ara encerrar mais um mês do orgulho, vamos conversar sobre um assunto de fundamental importância: a autonomia de pessoas trans e travestis. Para introduzir o tema, gostaria de começar por um diálogo entre Damon e Blanca Evangelista, personagem transexual interpretada pela atriz também transexual MJ Rodriguez, presente no primeiro episódio da primeira temporada da série estadunidense Pose do canal FX e disponível na Netflix.
Damon pergunta: “Você tem um emprego de verdade ou… “Ao que ela prontamente responde: “Não julgo as pessoas pelo modo como vivem. Eu tenho sorte, posso me ‘passar’ por mulher, tomei hormônios e sei como agir. Eu escondi dos meus pais quem eu era por muito tempo. Eu esperava eles dormirem, me maquiava, me montava e fugia para os bailes, voltando antes deles acordarem. Eu me achava muito esperta!”
E Blanca continua: “Aí, no Dia de Ação de Graças… eu jamais me esquecerei! Minha mãe só me olhava e sorria, desviando o olhar. Então, finalmente eu a perguntei: “Mãe, por que você está sorrindo?”. Sabe o que ela disse? ‘Você se acha tão esperto. Eu vejo aquela mocinha que entra e sai do seu quarto escondida tarde da noite’. Eu me engasguei! O susto foi tão grande que não consegui falar nada. Então, ela disse que não estava brava, mas aliviada por eu não ser um daqueles “gays pecadores”.
Nesse momento, Damon expressa incredulidade: “Meu deus! O que você fez?” E Blanca conta a ele o que disse a sua mãe: “Mãe, aquela não era uma moça estranha entrando aqui escondida, era eu. Eu não sou gay e não sou pecador. Eu sou uma mulher, mãe. Não sou seu filho, mas sua filha”. Blanca respira fundo e prossegue: “Ela não tolerou isso. Ela me expulsou de casa e de seu coração. Eu chorei feito um bebê e fui embora sem olhar para trás.”
“Quando você é rejeitada pela sua mãe, pelo seu pai, você vive procurando alguém para substituir o que falta”
Já terminando essa cena, Blanca exprime o que significa a longa busca por autonomia de pessoas trans e travestis: “Quando você é rejeitada pela sua mãe, pelo seu pai, você vive procurando alguém para substituir o que falta”. A procura da qual se refere Blanca, não é o amor materno/paterno, mas o respeito a quem somos da sociedade na qual vivemos. O que nos falta é o sentimento de pertencimento social, estamos quase sempre tentando nos “encaixar” ao modo de vida preestabelecido que nos foi arrancado: família, educação, trabalho, convívio social etc. Em uma sociedade marcadamente cis-sexista, que nega a existência de pessoas trans e travestis, e que, por consequência, impõe um regime de apartheid dessa parcela da população.
Creio que a história ficcional contada por Blanca é a história vivida pela maioria de nós travestis e mulheres transexuais brasileiras, ainda que separadas por milhares de quilômetros de distância e em contextos sociopolíticos e culturais tão distintos um do outro, me lembrando um trecho da música “Travesti” de 1978, que em um de seus versos diz: “Eu sou a violência personificada”, pois se há algo que compartilhamos em nossos relatos de vida são as marcas da violência transodiante.
Falar em transódio, e não em transfobia, implica uma politização da palavra fobia (patologia, transtornos fóbico-ansiosos, caracterizada por medo ou aversão persistente a um objeto ou uma situação, classificada pelo Código Internacional de Doenças (CID): CID 10 – F40.), que invisibiliza a violência de um cis-tema que opera, racionalmente, criando esse tipo de ódio, de base social e cultural (preconceito), dirigido às pessoas trans e travestis. Quando falamos em transfobia convertermos o transfóbico em vítima de sua própria condição patológica, o que carece de responsabilidade por suas ações, pois violentar alguém por sua identidade de gênero não é uma enfermidade, portanto não é uma fobia. O que explica, em partes, uma leitura social e midiática de que somos violentas, porém nunca violentadas, é dizer, a responsabilidade dos atos transodiantes recaem sobre as pessoas trans e travestis, culpabilizando as vítimas de violência transodiante, exclusivamente, por serem quem são.
“Quando falamos em transfobia, convertermos o transfóbico em vítima de sua própria condição patológica, o que carece de responsabilidade por suas ações, pois violentar alguém por sua identidade de gênero não é uma enfermidade, portanto não é uma fobia”
Segundo a Associação Nacional de Travestis e Transexuais (ANTRA), a expectativa de vida da população trans e travesti no Brasil é de 35 anos – enquanto a expectativa de vida da população cisgênero é de 75 anos, em média. Ainda segundo a ANTRA, o Brasil é o “campeão mundial” no assassinato de travestis e mulheres transexuais: entre os anos de 2017 e 2020, foram registrados 623 travesticídios e transfeminicídios no Brasil, dos quais, aproximadamente, 80% das vítimas eram negras (pretas e pardas) e 60% tinham entre 15 e 29 anos. Corroborando as afirmações de que o transódio é um vício branco e parte do genocídio da juventude negra brasileira, conforme aponta Maria Clara Araújo, pedagoga, ativista e articuladora política.
O assassinato de pessoas trans e travestis brasileiras corresponde, anualmente, a quase metade dos assassinatos dessa população globalmente, segundo a ONG Transgender Europe. Já nos primeiros 4 meses de 2021, a ANTRA registrou 54 assassinatos de travestis e mulheres transexuais e 2 homens trans. É também significativo e grave o número de tentativas de assassinatos, suicídios e violações de direitos humanos apresentados pela ANTRA.
Por outro lado, o site RedTube entre outros sites internacionais de pornografia, colocam o Brasil como o país que mais consome pornografia com pessoas trans e travestis no mundo desde 2016. De acordo com estimativas da ANTRA, 90% da população de travestis e mulheres transexuais brasileiras está na prostituição como única fonte de subsistência, majoritariamente, travestis e mulheres transexuais negras; 6% se encontram em atividades informais e subempregos e apenas 4% em empregos formais.
Um estudo inédito realizado na cidade de São Paulo, entre novembro de 2019 e novembro de 2020, pelo Centro de Estudos de Cultura Contemporânea (CEDEC), a partir de contrato firmado com a Secretaria Municipal de Direitos Humanos e Cidadania (SMDHC) e recursos provenientes de emenda parlamentar do Vereador Eduardo Suplicy, mapeou parte da população trans e travesti da capital paulista. Das 1.788 pessoas trans e travestis entrevistadas, 18% haviam concluído o Ensino Fundamental I, 20% o Ensino Fundamental II e 51% o Ensino Médio – desses últimos, apenas 12% haviam concluído o ensino superior. Em relação a identidade de gênero, observou-se que as categorias de homens trans e pessoas não binária possuem maiores índices de conclusão do ensino médio (64% e 68% respectivamente) que mulheres trans (48%) e travestis (39%), bem como de conclusão do ensino superior. Considerando a centralidade do marcador de raça/etnia, a hipótese é que exista uma diferença percentual entre mulheres transexuais e travestis brancas e negras, as primeiras possuindo maiores índices de escolaridade.
O assassinato de pessoas trans e travestis brasileiras corresponde, anualmente, a quase metade dos assassinatos dessa população globalmente, segundo a ONG Transgender Europe
A nível nacional, uma pesquisa divulgada este ano pelo Grupo de Estudos Multidisciplinares da Ação Afirmativa (GEMAA) da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) mostra que população trans e travesti presente nas universidades federais é de 0,3% do total de estudantes – em números absolutos, são apenas 2.924 estudantes trans e travestis.