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“Passo mais tempo combatendo o racismo do que discutindo projetos”

Bruna Rodrigues, vereadora do PCdoB em Porto Alegre, fala sobre racismo, militância e próximas eleições

por Beatriz Lourenço Atualizado em 19 jul 2021, 12h23 - Publicado em 19 jul 2021 02h17
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(Clube Lambada/Ilustração)

m novembro de 2020, a Câmara dos Vereadores de Porto Alegre se tornou mais diversa — ainda que não o suficiente para deixar o local igualitário. Pela primeira vez, o município elegeu cinco parlamentares negros, dentre eles quatro mulheres, uma delas líder de bancada: Bruna Rodrigues, do PCdoB.

Eleita com 5.366 votos, Bruna teve a adolescência marcada pela violência doméstica, por muito trabalho e pela maternidade. Nascida e criada na Vila Cruzeiro, periferia da cidade, ela entende as necessidades daqueles que são mais vulneráveis. As escolas de qualidade, a vaga na creche para mães que trabalham, a saúde pública e o transporte que chega em bairros mais afastados são as diretrizes de seus mandatos. Ainda assim, esses projetos, que parecem simples, não têm total apoio. “Somos em dez parlamentares progressistas, porém, 26 governistas. Com isso, o trabalho fica difícil porque, para aprovar qualquer coisa, precisamos de votos que não temos”, conta.

O número de mulheres na Câmara aumentou quase três vezes em relação à eleição anterior, passando de quatro para onze. Com isso, Porto Alegre se torna a capital com maior número de eleitas, seguida por Belo Horizonte, Natal e São Paulo. No entanto, apesar do aumento, a maioria dos eleitos são homens brancos, totalizando 24 das 36 cadeiras. A dificuldade de escuta é o maior problema que isso causa. Segundo Bruna, os vereadores não a olham, não direcionam a palavra e não ouvem o que ela diz. “Eles falaram que estão acostumados a discutir com homens, mas eu sou mulher, fui eleita e represento o povo”, afirma.

A parlamentar também faz parte de outro marco na história da cidade: a Frente Parlamentar Antirracista. Aprovada por unanimidade em fevereiro deste ano, ela foi formalizada no dia 29 de abril. Além dela, a coordenação da Frente será dividida pelas vereadoras Karen Santos (PSOL), Daiana Santos (PCdoB), Reginete Bispo (PT) e o vereador Matheus Gomes (PSOL). De acordo com Rodrigues, este é um espaço unificado que tem como objetivo articular políticas e ações antirracistas. O grupo já teve uma primeira reunião, a qual decidiu os principais núcleos de articulação: saúde, educação e proteção à mulher.

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(Lorena Risse/Fotografia)

É importante lembrar que esse movimento é essencial, uma vez que Porto Alegre lidera desigualdade entre negros e brancos no país. Segundo dados de 2017 divulgados pelo Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada), o IDHM (Índice de Desenvolvimento Humano Municipal) da população negra na capital gaúcha é de 0,705, enquanto o da população branca é de 0,833. A diferença de 18,2%, é a maior encontrada entre as cidades brasileiras consideradas no estudo — a diferença média nacional é de 14,42%.

Após alguns meses de sua eleição, a vereadora já protocolou três projetos de lei: O PL Selo Empresa Amiga da Mulher, que visa criar um selo para incentivar empresas que comprovem ações de boas práticas relativas à igualdade de gênero; o PL Complementar Recicladores de Resíduos Sólidos, que tem o objetivo de retirar o caráter de infração que tem recaído sob os trabalhadores por entender que o “lixo” é de propriedade do município e a PL Violência Doméstica, que institui prioridade de acesso aos programas e políticas sociais às mulheres vítimas de violência doméstica. Em uma conversa franca sobre sua trajetória e visão de mundo, Bruna conta como é fazer parte da Câmara dos Vereadores de Porto Alegre.

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(Bruna Rodrigues/Fotografia)

Como é o começo da sua história na política e qual foi o ponto chave para você começar na militância?
A minha militância começa com a luta pela vaga na creche. Sempre estudei em escola pública e ela era o lugar que me acolhia nos momentos que eu precisava. Isso porque minha mãe sofria violência doméstica em casa, era um processo difícil mas que, na época, era naturalizado dentro das comunidades. Dito isso, minha mãe foi mãe aos 13 anos e eu fui mãe aos 16, mas fiz da maternidade o meu maior desafio. Assim, sempre quis que ela não fosse um espaço de reprodução, mas de luta.

Um dia, eu estava sentada na calçada de onde eu morava e passou uma mulher na rua falando da necessidade dos jovens na vida política para que mulheres como eu tivessem mais espaço e direitos. Essa jovem era Manuela d’Ávila, candidata a vereadora na época. Nós, então, a apoiamos porque ninguém tinha falado conosco daquela forma antes. A juventude é vista como algo a ser considerado no futuro, só que muitos jovens nem chegam lá. A juventude de onde eu venho não tem oportunidade, por isso é preciso pensar no presente — e essa era a proposta da Manuela. A partir disso, organizamos as mulheres que já eram mães na comunidade e passamos a lutar para que se retomasse a creche que nós tínhamos perdido. Eu não imaginei que esse seria só o começo. Refleti que não ter essa vaga é algo decisivo para as mulheres, é quase como uma violação. Elas ficam sem condições de conquistar sua liberdade econômica, o que é essencial. Aí iniciei minha militância e me filiei ao PCdoB.

Vereadora Bruna Rodrigues
Vereadora Bruna Rodrigues (Elson Sempé Pedroso/Fotografia)

Nessa época, quais outros movimentos de luta você participou?
Quando começaram as obras da Copa do Mundo de 2014, fui removida por uma delas. Parte da comunidade recebeu uma cartinha embaixo da porta dizendo que tinha 45 dias para sair de casa. Nos organizamos em um outro processo de luta para que nos garantissem outro lugar para morar. Quem aderiu ao movimento teve sucesso, e quem não teve luta até hoje para pagar um aluguel social. Em seguida, fecharam a escola da região e houve diversas tentativas de fechar o pronto atendimento da Vila Cruzeiro, o maior da cidade e o que todas as pessoas da comunidade usam. Foram vários processos de mobilização e de necessidade de resistência.


“A juventude é vista como algo a ser considerado no futuro, só que muitos jovens nem chegam lá. A juventude de onde eu venho não tem oportunidade, por isso é preciso pensar no presente”

A escola era a Escola Estadual Alberto Bins. A justificativa do governo foi que reduziu o número de alunos, mas uma escola leva muito tempo para criar respeito dentro de uma comunidade. Quando fecharam, em uma véspera de Natal, os lugares que poderiam nos atender não estavam mais respondendo e as crianças não estavam mais em aula. Identificamos que esse processo foi estratégico. A secretaria de educação não deu nenhuma informação e não houve ata do conselho escolar. Hoje o lugar é ocupado pelo Coletivo Preta Velha porque passou a ser usada para uso de drogas, estupro e até agressões. Os alunos foram redistribuídos, mas muitos nem seguiram com os estudos porque há conflitos de território e um problema no deslocamento.

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Tem um momento da militância que a gente percebe que só ocupando os espaços de poder conseguimos construir projetos e mudar a política. É preciso se organizar e resistir porque as pessoas que estão lá quase nunca precisaram acessar políticas públicas.

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Qual é o seu papel após a eleição?
Chegamos na Câmara dos Vereadores com uma relação de forças muito desfavorável. Antes da nossa eleição havia apenas um negro eleito — tanto que falavam que apenas um de nós iria vencer. Há 36 cadeiras lá, por isso é inadmissível que precisamos nos digladiar para eleger só um negro. Assim, formamos a primeira bancada negra dentro de uma composição de 10 parlamentares progressistas, porém, 26 governistas. Aí o trabalho fica difícil porque, para aprovar qualquer projeto, precisamos de votos que não temos.

Nosso trabalho dialoga muito mais com a busca por representatividade. Nossas vozes nunca foram ouvidas, a gente garantia a limpeza e a manutenção do lugar e agora estamos em outra posição. Queremos que o povo se acostume com as nossas pautas. No dia 29 de abril lançamos a primeira Frente Parlamentar Antirracista pois temos o desafio de pautar a política pública, identificar quais são as principais mazelas do movimento negro, pensar onde podemos cobrar do executivo políticas afirmativas e como podemos elaborar uma política mais inclusiva.

Porto Alegre é a capital com maior número de mulheres eleitas, mas ainda assim a maioria são homens brancos.
E dessas mulheres a maioria são brancas e têm um referencial político tradicional. Apenas quatro são progressistas. O restante são homens e homens brancos. Eu sou a única mulher líder de bancada da oposição. No início, nós tínhamos um problema de escuta porque os homens não nos ouviam. Eles não me olhavam e nem falavam comigo. Até que um dia eu bati na mesa e disse que a representação do PCdoB na Câmara é feminina e eles precisavam mostrar respeito. A resposta foi, além de um choque, que eles estavam acostumados a discutir com homens.

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(Jeannifer Machado CMPA/Fotografia)

Em 2020 tivemos a pandemia e os atos Black Lives Matter, isso refletiu nas urnas?
Sim. Tem uma galera que enxergou que essas pautas são essenciais, mas ainda há muito racismo a ser combatido. Uma vez me perguntaram se agora eleita eu continuo sofrendo com isso e eu respondi que eu continuo acordando preta todos os dias. Não é possível desconsiderar o racismo, eu não vou de bolsa em nenhum lugar, por exemplo, porque é a certeza de ter uma perseguição mais efetiva. Isso é algo que não podemos naturalizar, mas ainda precisamos nos cuidar porque faz parte da nossa existência. Mesmo sendo vereadora, eu ainda sou uma mulher negra. Enquanto uma parcela luta por direitos, as pessoas negras ainda lutam por existir.

Recentemente foi divulgado um áudio do candidato a prefeito Valter Nagelstein que falava de forma indignada da eleição e de como ela refletiu na ocupação de homens e mulheres negros e negras na universidade. Ele expressou todo o sentimento da branquitude elitizada. Referindo-se aos vereadores recém-eleitos do PSOL, ele afirmou que “muitos deles são jovens, negros” e “sem nenhuma tradição política, sem nenhuma experiência, sem nenhum trabalho e com pouquíssima qualificação formal”. Quando ouvimos, nós encaminhamos para a delegacia de combate à intolerância de Porto Alegre, mas os dias foram de muita dureza.

Se, por um lado, fomos eleitos como representantes do povo, por outro, ainda temos uma parcela da população que faz essas coisas. Na Câmara, somos hostilizados a cada sessão. Estamos mais tempo combatendo o racismo do que de fato debatendo nossos projetos.

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Movimentação de plenário. Vereadora Bruna Rodrigues no microfone de partes.
Movimentação de plenário. Vereadora Bruna Rodrigues no microfone de partes. (Jeannifer Machado CMPA/Fotografia)

Quais são os principais projetos que vocês estão trabalhando?
De uma lista extensa, escolhemos alguns para serem apresentados. Por exemplo, os coletores de resíduos sólidos estão sendo perseguidos e multados, ao mesmo tempo, é natural a gente votar por exonerações fiscais para grandes empresas. Portanto, é natural a gente defender o povo também. Então fizemos um projeto para eles deixarem de ser criminalizados. Também temos um de combate ao feminicídio e, além disso, também criamos um projeto para que a prefeitura divulgue que a máscara mais segura é a N95/PFF2.


“Uma vez me perguntaram se agora eleita eu continuo sofrendo com isso e eu respondi que eu continuo acordando preta todos os dias. Não é possível desconsiderar o racismo, eu não vou de bolsa em nenhum lugar, por exemplo, porque é a certeza de ter uma perseguição mais efetiva”

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Paulo Guedes afirmou que o Fies bancou universidade até para ‘filho de porteiro que zerou o vestibular’. Essa fala dialoga com a sua história.
Eu sou a primeira mulher da minha família a entrar na universidade. Isso é um marco porque não era permitido a nós até pouco tempo atrás. Antes ninguém tinha perspectiva de estudos, agora todo mundo quer ser doutor. Minha mãe, que é gari de profissão, hoje enxerga mais possibilidades. Ela é uma mulher que conta nossa história para as outras com orgulho e diz que dá pra ser, dá pra crescer e dá pra romper com a violência.

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Qual é o maior desafio da esquerda na política?
O desafio é fazer as pessoas se interessarem pela política. Eu acho que o nosso povo precisa mudar essa relação. A política nos foi negada durante muito tempo, portanto a gente ainda a olha com estranheza. Só que é o governo que elabora a política pública e decide o que a gente tem ou não tem. É ele que define se a gente vai ter ou não merenda na escola, transporte e saúde. Não pode ser uma relação de “eu escolhi você pra nos representar e você faz tudo”, a atuação tem que ser conjunta. Meu papel é resistir lá dentro toda segunda e quarta e sair com nossa galera maior do que entrou e mais consciente também.

Eu acredito que esse sentimento de “não gosto de política” é incentivado. Se você ligar a TV, o que aparece é a política que não deu certo. Então, é como se você fizesse parte de algo errado. Precisamos fazer bate-papo em escolas e falar da importância de se organizar e conseguir ocupar esse espaço.

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Como você percebe esse cenário eleitoral de 2022?
Eu acredito que vai ter muita influência das ações desse ano. A gente precisa denunciar esse governo e desconstruir a história do mito. Elegemos um salvador da pátria, mas precisamos fazer com que a população saiba que isso é algo que não existe. Em 2022 serão dois candidatos com essa imagem salvadora competindo: o Lula e o Bolsonaro — e nesse cenário, eu votarei no Lula.

Ainda assim, precisamos pensar quem temos que eleger para reconstruir o Brasil. Bolsonaro chegou lá por uma série de fatores, como o crescimento das igrejas, que criou essa narrativa do salvador e a necessidade de segui-lo sem questionamento algum. A esquerda precisa ter ciência de quem está enfrentando, saber melhor quem são seus adversários e estudar as formas de encará-los sem romantizar a política. Precisamos ir à campo estudar o povo e dizer a eles que o que estamos passando tem saída.

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