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A vida do Oitavo Anjo

O rapper Dexter subverteu o sistema carcerário ao cantar de dentro do Carandiru sobre a liberdade e a falta de apoio do Estado às periferias

por Beatriz Lourenço 17 dez 2021 04h09

Martin Luther King chamou o seu filho de Dexter para homenagear a avenida onde pregou pela primeira vez. O nome significa, em português, “homem ágil”, “habilidoso” e “esperto”. Ao ler a biografia do ativista e se deparar com a tradução, Marcos Fernandes de Omena adotou o apelido para si. O que não sabia na época é que ele ecoaria em todo os cantos do país e se tornaria uma das referências mais importantes do hip hop nacional.

O cantor cresceu na periferia de São Bernardo do Campo, na Grande São Paulo, e ficou conhecido na música pelos grupos Tribunal Popular e 509-E. Esse último nasceu em parceria com o rapper Afro-X dentro da Casa de Detenção de São Paulo, o Carandiru. “Quando estava no presídio, minha vontade de não continuar no crime era imensa. Aquilo não era uma vida para mim. Eu pude ver lá dentro o que o sistema faz com as pessoas que são privadas de sua liberdade”, explica o artista. “Criar o grupo foi uma forma de fugir do que o sistema estava me oferecendo.”O jornalismo em que a gente acredita depende de você; apoie a elástica

Provérbios 13 foi o primeiro álbum de estúdio da dupla. Lançado nos anos 2000, ele chegou com 12 faixas que contavam sobre a vida no cárcere e denunciavam as mazelas do Estado, como “Oitavo Anjo” e “Saudades Mil”. “Cantar rap dentro do presídio, sair e poder voltar é uma forma de subversão. Mas infelizmente chega um dia que você aceita que vai ser atingido pela retaliação porque nunca vai deixar de falar sobre como eles agem”, afirma.

Após o 509-E se desfazer, o rapper seguiu carreira solo e lançou três discos. Em agosto deste ano, resolveu se aventurar no samba e apresentou ao mundo o single “Lá de onde eu venho”, que exalta a realidade e o cotidiano das favelas – com muito orgulho. “A canção tem a ver com a força do nosso povo e da batalha que as mulheres travam todos os dias nas periferias”, diz.

Dexter foi o escolhido para fechar o Campão Cultural, festival que reuniu mais de 150 atrações em Campo Grande, no Mato Grosso do Sul. O show contou com a música “Voz Ativa” e outros sucessos de sua carreira. Ao fundo, referências como Angela Davis apareceram no telão para mostrar que a cultura preta deve ser cada vez mais valorizada. Pouco antes do evento, conversamos com o artista sobre sua trajetória na música, política e seus projetos sociais.

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(Campão Cultural/Divulgação)

Quando o rap surgiu na sua vida e o que te chamou atenção na hora que você ouviu?
O rap é uma música feita do povo para o povo. Quando eu ouvi o Racionais MC’s cantando a música “Pânico na Zona Sul”, automaticamente me identifiquei porque era uma realidade na qual eu vivia também. A história da Zona Sul não era diferente da região do ABCD, onde eu morava. Essa canção retrata o cotidiano violento do Capão Redondo por conta da ação da polícia e dos chamados “matadores” da época. Em Diadema, a polícia e o governo faziam a mesma coisa e o racismo não era diferente. Quando ouvi aquele som, eu me vi, foi como uma luz acendendo no quarto escuro da ignorância que eu vivia.

Naquele momento, decidi que era isso o que eu queria fazer – eu fui colocado para a guerra. Prometi que, se aquele cara que estava cantando era de verdade, eu ia conhecê-lo e aprender muito com ele. Hoje, já são 31 anos de amizade porque fui atrás desse objetivo e passei a cantar rap. Gosto de ressaltar que o hip hop salva vidas no mundo todo e salvou a minha também, todo mundo precisa saber isso. Apesar dessa ser uma cultura criminalizada, a periferia, principalmente, precisa saber que ela salva. Do começo para cá, 17 anos se passaram e eu me tornei um elo dessa corrente com muito orgulho.

As letras do rap conversam com a periferia e demonstram um sinal de empatia, né? Além de levar força para quem ouve.
O hip hop e todos os seus elementos são o grito de quem não tem grito, de quem é calado pelo sistema e de quem é impedido de falar. Nós, rappers, que nos tornamos instrumentos dessa cultura, ecoamos a voz dessas pessoas. Nós somos o preto e o pobre que mora nas favelas, nos becos e nas vielas.

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“Eu gosto de ressaltar que o hip hop salva vidas no mundo todo e salvou a minha também, todo mundo precisa saber isso. Apesar dessa ser uma cultura criminalizada, a periferia, principalmente, precisa saber que ela salva”

Você adotou o apelido Dexter após ler a biografia de Martin Luther King. Vem dos livros a consciência de lutar por um mundo com menos desigualdades sociais?
Sim! A literatura me trouxe muito conhecimento e continua me trazendo todos os dias. Assim que eu entrei para o hip hop ele me questionou sobre querer ser uma pessoa diferenciada e útil porque eu não queria ser alguém só com ibope e dinheiro. Assim, se minha escolha fosse somar e salvar vidas, eu precisava ler. É como diz a frase do próprio Racionais MC’s: “leia, se informe, se atualize e decore”. Quando eu ouvi isso, foi um convite a aprender mais do que a escola convencional me ensinava. Por isso eu fui aos livros e descobri um mundo sensacional e cheio de viagens.

Lembrando que há pouco incentivo à leitura por parte do Estado, principalmente para quem mora nas periferias.
Isso é o sistema investindo na inércia das pessoas. Por isso que não há biblioteca nas quebradas! Geralmente, o sistema investe naquilo que não mobiliza. As novelas estão aí todos os dias, o futebol sempre passa na televisão e eles continuam não investindo na leitura. O resultado é esse governo anti-cultura e anti-inteligência do povo.

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(Campão Cultural/Divulgação)

Você acabou de criar uma biblioteca no Jardim Calux, em São Bernardo do Campo, como foi essa experiência?
Essa biblioteca nasceu na favela onde fui criado, e leva o nome “Dexter King Nino Brown”. É o meu nome junto com o de King Nino Brown, que é uma pessoa super importante em relação à cultura negra. Ele fortaleceu a música black, também é um DJ e um estudioso e um propagador da cultura.

Quem teve a ideia de criar tudo foram os jovens que vivem nesses bairros e eles me pediram ajuda. Alguns amigos doaram os livros e inauguramos no mês de agosto deste ano. Quem fica lá é um coletivo chamado “Resenha, café e amigos”. Enquanto isso, o governo de São Bernardo do Campo está fechando uma das maiores e mais antigas escolas da região do Jardim Beatriz. Ou seja, estamos todos os dias caminhando na contramão desse governo fascista.

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“Isso é o sistema investindo na inércia das pessoas. Por isso que não há biblioteca nas quebradas! Geralmente o sistema investe naquilo que não mobiliza. As novelas estão aí todos os dias, o futebol sempre passa na televisão e eles continuam não investindo na leitura. O resultado é esse governo anti-cultura e anti-inteligência do povo”

Conte um pouco de como nasceu o 509-E?
O 509-E nasce dentro do Carandiru porque, quando eu estava no presídio, a minha vontade de não continuar no crime era imensa. Aquilo não era uma vida para mim. Eu pude ver lá dentro o que o sistema faz com aquelas pessoas que são privadas de sua liberdade. A minha vontade era de seguir no rap e criar um grupo. Minha inspiração foi o Detentos do Rap – que já existia quando eu cheguei na Casa de Detenção de São Paulo e eles saíam para fazer shows. Pensei que se eles conseguiam, eu conseguiria também.

Foi aí que eu conheci a Sophia Bisilliat, que desenvolvia o trabalho “Talentos Aprisionados”. Eu cantei para ela e ela se interessou em me ajudar. A vontade de criar o 509-E em si foi para fugir do que o sistema estava me oferecendo. Eu vi jovens da mesma cor e idade que eu morrendo cedo por conta de nada. Eu decidi que não ia trilhar esse caminho, eu tinha que falar sobre a vida e sobre as mazelas da sociedade.

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(Campão Cultural/Divulgação)

Essa foi uma forma de subverter o próprio sistema carcerário, que não é feito para esse tipo de criação?
Exatamente. A gente teve uma força para sair e fazer shows por conta do projeto da Sophia e porque o juiz da época apoiava tudo isso. Ele tinha uma política de reinserção dessas pessoas na sociedade, mas, no fim, ele foi convidado a se retirar logo. Quando uma instância maior percebeu que ele estava dando oportunidade para que os presos saíssem do crime, ele foi silenciado. É assim que você percebe o que é, de fato, o sistema. Entra ano, sai ano e a política não quer acabar com o crime porque manter isso engorda a conta de alguém.

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Cantar rap dentro do presídio, sair e poder voltar é uma forma de subversão, sim. Mas infelizmente chega um dia que você aceita que vai ser atingido pela retaliação porque nunca vai deixar de falar sobre como eles agem. Ao passo que eles nunca vão deixar de me boicotar. Eles sempre vão estar de olho em mim, nos Racionais e até em você que está me dando voz.

“A gente teve uma força para sair e fazer shows por conta do projeto da Sophia e porque o juiz da época apoiava tudo isso. Ele tinha uma política de reinserção dessas pessoas na sociedade, mas no fim ele foi convidado a se retirar logo. Quando uma instância maior percebeu que ele estava dando oportunidade para que os presos saíssem do crime, ele foi silenciado. É assim que você percebe o que é, de fato, o sistema”

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(Campão Cultural/Divulgação)

Você comentou que o sistema do cárcere é alimentado pelo próprio Estado. Quando você se deu conta disso?
Antes mesmo de eu entrar na prisão, o rap me abriu os olhos para isso. Quando fui para dentro dos presídios, fui consciente de que isso era o trabalho do sistema. Eu estava inserido nele porque precisava de dinheiro para gravar meu disco e infelizmente ele não veio através do meu trabalho. É muito difícil o começo nas artes porque no Brasil não há incentivo para quem é preto e pobre, é preciso correr com as próprias pernas.

As leis de incentivo para quem mora na favela é uma porta quase inexistente. Aí fui tirar de quem tinha para dar para quem não tinha, mas de uma forma errada – foi uma espécie de Robin Hood. Mas ressalto que é errado, porque não posso incentivar que outros jovens façam isso, até porque muitos quando saem para assaltar não voltam para casa.

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Hoje, um dos discursos do atual governo é a facilitação do acesso às armas. Como você percebe isso?
O que esperar desse atual governo, né!? Militar, com um discurso misógino, racista e fascista. São só atrocidades, mesmo. Ele tinha que facilitar o acesso à alimentação de qualidade, tinha que facilitar a educação e, principalmente, o respeito pelo outro. Um país que incentiva armas, e não comida, está fadado ao fracasso.

Ainda há quem o apoie porque a máquina sabe como fazer isso. Primeiro, ela faz o povo desacreditar de um para depois fazer o povo acreditar no outro. E quando eu digo isso, estou falando do golpe. A gente tinha uma mulher lá muito foda que não queria ceder aos caprichos dessa máquina. E por máquina lê-se a grande imprensa, os grandes empresários e essas pessoas de poder.

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(Campão Cultural/Divulgação)

Você faz parte do projeto Trampo Justo, que promove a inserção de jovens de abrigos no mercado de trabalho. Isso é um papel do Estado que geralmente é cumprido por serviços sociais.
Esse é um trabalho de suma importância e que o governo não desenvolve – embora o Iberê de Castro Dias, que trabalha na Vara da Infância e da Juventude, faça parte desse trabalho também. Isso é um braço do Estado, mas são poucos os que têm essa noção. As ações são essenciais para que o jovem tenha força para lutar por si próprio. Acolher esses adolescentes e garantir o futuro de cada um deveria estar no topo da lista de prioridades.

A política de reinserção geralmente é feita por pessoas que também saíram do sistema carcerário e criam as ONGs para ajudar outras pessoas. Elas criam condições porque sabem que são todas vítimas do próprio Estado.

Na música “Oitavo anjo” você canta “não me escondo atrás da bíblia”. Já a “​​Me faça forte” fala que “Deus é maior e supremo”. Qual é a sua relação com a espiritualidade?
Eu acredito que o que mata não é a religião, são as pessoas que usam dela para deturpar a fé e enriquecer. Quando falo que “não me escondo atrás da bíblia”, estou falando da cadeia. Naquele momento eu estava lá dentro e via as pessoas que usavam da bíblia para poder se esconder, também falo dos pastores que não estão presos e que usam da fé para corromper a igreja.

Mas acredito que cada um de nós tem um Deus dentro de si, e eu tenho o meu. Quando falo dele nas minhas músicas é porque eu também creio. Mas abomino quem usa da palavra Dele para si próprio.

Recentemente você lançou o ‘Lá de onde eu venho’, que marca sua estreia no samba. Como você define o momento que você está na sua carreira?
Na verdade, há 30 anos atrás eu comecei no rap e no samba. Esse gênero sempre me acompanhou desde pequeno e gosto muito de cantá-lo. Eu tenho me aproximado bastante recentemente, até porque tenho vários amigos que me chamam para fazer parcerias.

Sempre pensei que quando eu ouvisse um samba que tocasse meu coração, ia gravá-lo. Foi aí que conheci a ‘Lá de onde eu venho’, composta pelo Billy Sp, e me encantei. Eu nem precisei ouvir a música toda para sentir vontade de gravar. Eu mudei algumas palavras para trazê-la mais para o meu estilo e gostei muito do resultado. Ela foi trilha do especial “Mães do Brasil”, da Rede Globo e isso me deixou muito feliz.

A canção tem a ver com a força do nosso povo e da batalha que as mulheres travam todos os dias nas periferias. É sensacional ver que uma música que eu gravei há menos de quatro meses já chamou atenção para essas pessoas que se movimentam dentro de suas comunidades e ajudam a construir nosso país.

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