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Golpe do perfume: entenda a polêmica de intoxicação no Uber

Ouvimos vítimas, especialistas e empresas que levam a uma única resposta em comum: as mulheres não têm o direito à dúvida

por Beatriz Lourenço Atualizado em 21 jul 2022, 11h14 - Publicado em 18 jul 2022 11h34
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(arte/Redação)

a semana passada, chamei um Uber para voltar para casa. Quando entrei no carro, senti um cheiro de capim-limão e logo me veio uma sensação de medo e ansiedade: “será que fico até o final da corrida ou saio daqui?”, foi o que pensei na hora. Abri todas as janelas, enviei a localização para três pessoas e não tirei o olho do trajeto. Quando paramos na porta de casa foi um alívio – mais um dia pude andar na rua em segurança. 

Acontece que, em março deste ano, uma jovem de Porto Alegre, Evelyn Moraes, não teve a mesma sorte: ela relatou ter sido intoxicada durante uma viagem em um carro de aplicativo. Segundo o relato, o motorista contou que produzia aromatizantes para carro e perguntou se ela gostaria de sentir o cheiro. Após se recusar a aspirar o produto, ele teria fechado as janelas do carro e ligado o ar-condicionado. Aí, a jovem começou a se sentir tonta e, apavorada, se atirou do carro em movimento – provocando lesões no quadril e na perna.

Evelyn usou o InDriver, um app que permite que o usuário defina o preço do trajeto que deseja percorrer. E, segundo ela, o motorista que a atendeu, apesar de usar o carro anunciado no aplicativo, era uma pessoa diferente da foto apresentada no celular. A história viralizou e outras denúncias desse tipo surgiram nas redes sociais ao redor do país todo.

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De lá para cá, o chamado “golpe do spray” ou “golpe do gás” têm sido compartilhado como forma de alerta para outros usuários de apps de transporte. Juliana, uma vítima ouvida pela Elástica conta que pediu um Uber para voltar para a casa depois do trabalho e, no caminho, notou um perfume muito forte que começou a incomodar. Quando viu que só a janela do motorista estava aberta, ela abriu a sua mas, ao entrar na Avenida Marginal Tietê, fechou por medo de ser assaltada. “Nesse momento o cheiro piorou, minha cabeça começou a doer e minha garganta e meus olhos começaram a arder bastante. Notei que havia algo estranho e me lembrei dos relatos que já tinha lido”, conta. “Como estava em uma ligação de vídeo, falei em voz alta que iria descer do carro e pedi para ele encostar num posto de gasolina.”

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(Natália Schi/Ilustração)

Que cheiro é esse?

De acordo com as postagens e denúncias, o aroma vem de lugares diferentes do carro: há quem diga que está no ar condicionado, num frasco de aromatizante para carro, no cinto de segurança ou até num spray simulando álcool. Segundo Cristiane Salum, professora de neurociência da Universidade Federal do ABC (UFABC), pouco se sabe sobre as possíveis substâncias usadas. “Há algumas que podem provocar esse efeito de intoxicação, como o éter, o formol e até a acetona concentrada. São produtos fáceis de encontrar e, para haver uma perda de consciência, o tempo de exposição não precisaria ser longo.” 

Mas a pergunta principal é: por que só a vítima sente os efeitos? De acordo com a especialista, o motorista pode, sim, ser atingido. Acontece que, se a janela estiver aberta e a pessoa estiver com máscara de boa qualidade, como PFF2 ou N95, eles são atenuados. “Se o passageiro fica mais de 10 minutos num carro fechado inalando essas substâncias, pode apagar facilmente. Mas o motorista com certeza também passaria mal – salvo se ele estiver usando uma máscara de gás”, afirma. 

Um exame toxicológico mais aprofundado pode auxiliar na investigação dos casos, mas o resultado depende da concentração da substância na qual a passageira foi exposta e da rapidez com que o exame foi realizado. “Nosso organismo elimina isso do sistema rapidamente, principalmente porque não foi algo que afetou diretamente a corrente sanguínea”, explica a professora.

Durante a apuração, procuramos a Secretaria de Segurança de São Paulo, que não sabe informar quantos boletins de ocorrência foram abertos e quantos casos estão sendo investigados. Já na 2ª Delegacia de Defesa da Mulher da Capital, a delegada Jacqueline Valadares afirma que está acompanhando uma denúncia e que as autoridades já identificaram o motorista, coletaram material para análise e a vítima foi encaminhada para exames toxicológicos. Agora, basta aguardar os laudos periciais para a conclusão do caso. 

“O que temos percebido de forma geral é que o fato é muito noticiado pelas redes sociais, mas isso não se transforma em um grande número de registros. Até então, esse golpe não foi consumado. Ou seja, não se sabe se esse gás foi realmente aplicado e qual seria a finalidade da conduta, se ela é de cunho sexual ou patrimonial”, diz.

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(Natália Schi/Ilustração)

Por que temos medo?

Um levantamento do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP) feito em 2021 revelou que uma em cada quatro mulheres acima de 16 anos afirma ter sofrido algum tipo de violência no último ano no Brasil. Isso quer dizer que 17 milhões de mulheres (24,4%) sofreram violência física, psicológica ou sexual. 

“É absolutamente compreensível que diante de qualquer tipo de suspeita a gente tenha muito medo. O corpo de uma mulher se locomovendo sozinha é um alvo constante de uma possibilidade de ataques e violações”, diz a jurista Isabela Del Monde, cofundadora da ​​Rede Feminista de Juristas (DeFemDe) e colaboradora do Me Too Brasil. “Independentemente se há ou não esse cheiro, o que importa é que estamos com medo. Se não tiver nenhuma substância encontrada, precisamos focar nas mulheres que se colocaram em risco ao pular do carro em movimento e tiveram uma resposta involuntária para sair dessa situação.”

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Apesar disso, a pesquisa “Percepções sobre segurança das mulheres nos deslocamentos pela cidade”, divulgada em outubro de 2021 pelos institutos Patrícia Galvão e Locomotiva, mostra que o carro de aplicativo é cenário de apenas 8% dos relatos de abusos que ocorrem durante o trajeto das mulheres. A maioria dos casos de assédio acontece nos ônibus (40%) ou quando elas estão a pé (62%), caminhando na rua. 

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(Natália Schi/Ilustração)

O outro lado 

Sabemos que a disseminação de informações na internet é muito rápida e afeta o psicológico dos usuários. Além disso, outras histórias como essa já surgiram anteriormente, como o mito da agulha com HIV nas salas de cinema. Essa lenda urbana, que teve início nos anos 1990, diz que se você sentar numa poltrona do cinema e sentir uma agulhada, há uma seringa com sangue contaminado com o ​​vírus. Se isso realmente chegou a acontecer, não sabemos. Porém, a história gerou desespero em grande parte da população brasileira.

No caso do Uber, as evidências de violência e feminicídio reforçam que as mulheres não têm direito ao benefício da dúvida – afinal, quem quer passar pelo risco só para ver se o gás é verdadeiro ou não?

“A gente pode estar diante de uma situação de geração de pânico. Nesse caso, é bom voltarmos alguns passinhos para trás e pensar que o motorista tem o mesmo funcionamento fisiológico que a passageira e, por isso, pode ser afetado pelo gás”, reflete Isabela. “A maioria das pessoas que estão ali estão dedicando suas horas de trabalho para se sustentar. Isso claramente são exceções. Não podemos esquecer que há um mito construído na sociedade de que essas pessoas de camadas mais baixas são mais propícias a cometer violências.”

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Em nota, a 99 informa que tem uma política de tolerância zero em relação a qualquer forma de violência, assédio ou violência sexual. A empresa diz, ainda, que dedica seus esforços na prevenção, proteção e acolhimento de todos os usuários da plataforma, principalmente para as mulheres. Entre os recursos de segurança, a plataforma conta com inteligências artificiais que oferecem segurança antes, durante e depois das viagens. As ferramentas atuam identificando passageiras em maior situação de riscos e direciona a chamada delas para motoristas mais bem avaliados ou motoristas mulheres. Além disso, rastreiam comentários deixados após as corridas para detectar palavras e contextos que possam estar relacionados a assédio para que medidas cabíveis, como acolhimento às vítimas e banimento dos agressores, sejam tomadas. 

A Uber, por sua vez, afirma que as duas únicas denúncias dessa natureza que já tiveram a investigação concluída pela Polícia Civil ocorreram em Canoas (RS) e no Rio de Janeiro. Em ambos os casos, as autoridades pediram o arquivamento após o inquérito policial, já que, de acordo com as investigações, não houve elementos de prática de crime. Especificamente no caso do Rio de Janeiro, o laudo pericial do líquido borrifado no veículo atestou se tratar de álcool 70% – e não foram encontradas outras substâncias de natureza tóxica, perigosa ou nociva.

Em nota, a empresa diz que “não tem conhecimento de nenhum inquérito que tenha sido concluído identificando elementos que comprovem o uso de quaisquer substâncias com o propósito de dopagem ou com o indiciamento do suposto motorista agressor”. E continua, declarando que trata todas as denúncias com a máxima seriedade e avalia cada caso individualmente para tomar as medidas cabíveis, sempre se colocando à disposição das autoridades competentes para colaborar, nos termos da lei.

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(Natália Schi/Ilustração)

Aconteceu comigo, o que fazer?

Ao passar por essa situação, é preciso ter duas iniciativas: a primeira é reportar para o aplicativo e a segunda, fazer uma denúncia para a polícia. “É importante que a gente demande uma investigação para as pessoas competentes e demande das autoridades públicas um papel de apuração para que a gente saiba se isso está efetivamente acontecendo ou não”, diz Isabela. “É bom ressaltar que, quando levamos o caso às autoridades, essas empresas de transporte precisam colaborar com a apuração. Há princípios éticos que serão seguidos.”

Ainda de acordo com a jurista, as vítimas também podem solicitar um apoio psicológico para a Uber. “O que importa é como a mulher se sentiu nesse momento. Por isso, procurar esse atendimento para lidar com o trauma e elaborar o que aconteceu é essencial.” 

No caso de Evelyn, mencionado no início da reportagem, a Polícia Civil concluiu que o motorista não cometeu crime, e a autora da denúncia foi indiciada por denunciação caluniosa. E esse é um fato que pode deixar outras pessoas com receio de denunciar – gerando uma subnotificação dos casos. “Nós temos uma longa história de objetificação e nosso passado é escondido e apagado. Por isso, quando nos pronunciamos, recai sobre nós toda essa percepção social de que não somos tão humanas assim”, ressalta Isabela. “Há um aparato do sistema de justiça que é majoritariamente ocupado por homens e que trabalha com regras feitas para homens. Além disso, foram criadas uma série de regras ao longo da história do direito brasileiro que eram permissivas com o cometimento de violências sexuais.” 

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Essa retaliação, portanto, tem a ver com o machismo que vivemos todos os dias e ainda está tão enraizado na sociedade. “Isso é um absurdo diante da lei porque, quando uma vítima procura uma delegacia, não é ela que vai decidir o que aconteceu e, sim, uma investigação policial. Qualquer um tem o direito de levantar uma suspeita. Essa ideia de que a mulher deve ter todas as provas é equivocada”, completa a especialista. 

Diante de uma sensação de pânico, temos três reações possíveis: lutar, fugir ou paralisar. Nesse sentido, é essencial tentar não aumentar o risco quando você se percebe vivendo o “golpe”, como confrontar o motorista ou sair do carro em movimento – essas ações podem piorar o risco. “O ideal é tentar sair do carro de forma segura e, imediatamente, buscar ajuda. Elas não têm nenhuma obrigação de coletar provas, mas as mensagens que enviamos para os amigos podem ser consideradas uma corroboração do relato da vítima na justiça”, explica Isabela.

*O intuito da nossa reportagem não é descredibilizar nenhuma vítima ou colocar em xeque a veracidade de qualquer relato. O que tentamos fazer é analisar todas as camadas dessa história e olhar para todos os lados a fim de denunciar, sim, que isso é possível de acontecer. Isso é reflexo de um problema muito maior e estrutural que afeta todas as mulheres. Reiteramos que quem passou por uma situação de medo tem o direito de receber acolhimento, investigação e defesa dos órgãos competentes.

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Como se proteger?

Celular compartilhando a localização1. Use máscaras de boa qualidade, como PFF2 ou N95.
2. Abra as janelas do carro quando entrar, a corrente de vento dissipa as substâncias no ar.
3. Compartilhe a localização com pessoas de confiança e diga para onde está indo.
4. Se sentir medo, ligue para alguém e converse com a pessoa até sair do carro.
5. Nos aplicativos, há opções de segurança, como gravar o áudio da viagem, chamar os contatos de emergência e ligar para a polícia. Acione-as sempre que preciso.

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As imagens que acompanham esta reportagem foram criadas por Natália Schi, conheça mais de seu trabalho aqui.

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