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Empreendedorismo antirracista

Conversamos com Luana Génot, criadora do Instituto ID-BR, sobre sua trajetória e participação no "Ideias à Venda" – novo reality da Netflix

por Beatriz Lourenço Atualizado em 7 fev 2022, 17h53 - Publicado em 6 fev 2022 21h04
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(Clube Lambada/Ilustração)

egundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad), do IBGE, o salário médio de trabalhadores negros foi 45% menor do que o dos brancos no ano de 2019. Quando fazemos o recorte de gênero, a desigualdade é ainda maior: a média salarial para mulheres pretas chegou a ser 70% menor do que a das mulheres brancas. Além dessa disparidade, há de se enfrentar a falta de contratações ou o congelamento de pessoas pretas nos cargos de base. 

Em 2021, outra pesquisa, dessa vez encomendada pelo Grupo Carrefour ao Instituto Locomotiva, mostrou que, se os profissionais negros fossem remunerados como seus pares, quase R$ 1 trilhão de renda seria adicionado ao mercado de trabalho nacional. Isso movimentaria a economia e traria benefícios para diversos setores, como o da cultura e o do consumo.

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Foi para entrar nessa luta que, em 2016, Luana Genót criou o Instituto Identidades do Brasil (ID-BR), responsável por promover a igualdade racial no mercado de trabalho. O que ela faz é desenvolver ações para que as empresas entendam onde estão na promoção do antirracismo. “Ensinamos a elas que não é possível investir em mudanças sem investir dinheiro. Antes, não havia orçamento para pautas raciais e queria-se que tudo fosse orgânico, sendo que, de modo orgânico, nós não saímos do lugar há anos.”

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O salário médio de trabalhadores negros foi 45% menor do que o dos brancos no ano de 2019. Quando fazemos o recorte de gênero, a desigualdade é ainda maior: a média salarial para mulheres pretas chegou a ser 70% menor do que a das mulheres brancas

Fonte: PNAD

Para chegar até aqui, a profissional passou por uma longa trajetória: estudou publicidade, foi bolsista do programa Ciência Sem Fronteiras, trabalhou na campanha presidencial de Barack Obama e passou por diversos cargos em que sentiu que suas sugestões não eram valorizadas. “Com o tempo, fui dando nome às coisas e não achava que tudo era coincidência, mas que era racismo”, revela. “Pensando nisso, fui entendendo o empreendedorismo como uma forma de burlar esse sistema.”

É por ser um nome marcante nessa área que Luana foi convidada para participar como jurada do reality show Ideias à Venda, que estreia na Netflix nesta quarta-feira, 9 de fevereiro. Sob o comando da apresentadora Eliana, os participantes terão que conquistar o público e os jurados em busca do grande prêmio de R$ 200 mil para investir em seus negócios. No formato game show, a cada episódio, quatro empreendedores do mesmo setor terão que apresentar suas ideias e enfrentar as etapas de eliminação. Para falar sobre essa experiência e sobre empreendedorismo antirracista, batemos um papo com Luana que você pode conferir abaixo:

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(Ideias à Venda/Divulgação)
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Você trabalhou na campanha presidencial de Barack Obama. Como foi essa experiência? Eram equipes realmente diversas? Isso mudava o dia a dia de trabalho?
Era, sim, e mudava completamente a rotina. Quando temos uma equipe diversa, conseguimos enxergar por mais pontos de vista e isso é muito positivo. Lembro que as pessoas alertavam que não poderíamos falar tal frase porque havia a possibilidade de ser homofóbico, capacitista ou racista. Além de aprender mais, a gente conseguia fazer mitigação de crise de uma forma muito eficiente. No meu campus, havia uma demanda grande para se voluntariar para esse trabalho. Assim, o comitê acabou criando cotas justamente para envolver diferentes grupos e ter essa variedade de pessoas.

Uma figura como Obama foi central porque ele conseguiu convocar aqueles que antes não se viam representados. Nos Estados Unidos, há a dinâmica de precisar se registrar para poder votar. Quando você não acredita no processo de campanha, muitas vezes não vai – é como se fosse o branco ou nulo daqui. Uma figura que chama as pessoas para o diálogo, como ele fez, ampliou a participação política. 

“Quando temos uma equipe diversa, conseguimos enxergar por mais pontos de vista e isso é muito positivo”

Luana Génot

Quando você percebeu que sua missão era promover igualdade racial no mercado de trabalho? Teve alguma situação específica, um turning point que te mostrou esse caminho?
Tive alguns insights, sim. Sou formada em publicidade e meu caminho de projeção de carreira não era inicialmente empreender. Mas, ao navegar pelo mundo corporativo e tentar entender como seria esse trajeto dentro de uma empresa, vi que a ascensão de cargo não seria possível dentro dos quadros que ia experimentando. Isso porque eu só era chefiada por pessoas brancas. Aquelas com quem eu tinha mais interação e me sentia mais acolhida eram as pessoas negras responsáveis pela limpeza. Com o tempo, essa situação me trouxe um viés crítico. Acho que em todo estabelecimento que entramos, temos que analisar onde estão as pessoas pretas e indígenas. Elas estão servindo ou sendo servidas? Na maioria das vezes, já sabemos a resposta.

Em 2014, trabalhava numa empresa onde não via minha ideias sendo ecoadas ou a possibilidade de ocupar cargos maiores a longo prazo. Foi algo que me inquietou muito. Nesse momento, já estava dando nome às coisas e não achava que tudo era coincidência, mas racismo. Pensando nisso, fui entendendo o empreendedorismo como uma forma de burlar o sistema. 

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Como surgiu a ideia de criar o ID-BR?
Por já ter essas experiências no mercado de trabalho e ter apreço pela pauta da igualdade racial, vi uma oportunidade de associar as duas porque achei que existiam poucas frentes no Brasil que falavam de maneira dedicada sobre isso, especialmente sobre cargos de liderança. Foi daí que surgiu a ideia do Instituto. Fiz um estudo de mercado para entender quem estava falando sobre antirracismo, como estava falando e o que eu poderia acrescentar com as minhas experiências. 

Esse caminho também foi possível porque, durante meu tempo no mundo corporativo, fiz economias e consegui ficar um ano planejando meu negócio. O ID-BR hoje está estruturado e tem mais de 50 funcionários. Ele é fruto dessa raiz de planejamento, críticas, mentoria e da possibilidade de ter pensado nisso com calma.  

“Acho que em todo estabelecimento que entramos, temos que analisar onde estão as pessoas pretas e indígenas. Elas estão servindo ou sendo servidas? Na maioria das vezes, já sabemos a resposta”

Luana Génot
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(Ideias à Venda/Divulgação)
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Quais são os efeitos do trabalho do Instituto nas empresas em que ele está presente?
Os efeitos têm sido muito marcantes nos últimos dois anos. Isso porque há uma maior vontade das empresas em mudar, especialmente após o caso George Floyd e o aparato de pressão da sociedade no qual o Instituto também faz parte. Essa pressão também ganhou força da sociedade civil no sentido de agora cobrar as empresas que só tem funcionários brancos, por exemplo. 

Nesse meio tempo, viemos experimentando um volume maior de nomes que querem mudar seu posicionamento. A partir disso, ensinamos que não é possível investir em mudanças sem investir dinheiro. Antes, não havia orçamento para pautas raciais e queria-se que tudo fosse orgânico, sendo que de modo orgânico nós não saímos do lugar há anos. Pensando em outras mudanças, vemos empresas fazendo processos exclusivos para pessoas negras ou lançando fundos para empreendedores negros. Atuamos para ajudar esses tomadores de decisão a assumirem um papel mais protagonista no direcionamento de recursos para a pauta antirracista – o que acarreta mais pessoas negras no mercado. 

Temos um cenário de aumento de mais de 400% de pessoas negras nas universidades graças às cotas raciais e sociais, mas essas pessoas não eram aproveitadas porque o mercado dizia que a gente não tinha cara de líder. Então, quando existe um programa que é intencionalmente voltado a fazer com que as pessoas consigam ver nas caras pretas, pardas e indígenas as caras de líder, é possível fechar o ciclo. Esses são os efeitos que temos produzido.

“Quando existe um programa que é intencionalmente voltado a fazer com que as empresas consigam ver nas caras pretas, pardas e indígenas as caras de líder, você consegue fechar o ciclo”

Luana Génot
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Em 2019, o salário médio de trabalhadores negros foi 45% menor do que do que o dos brancos – desigualdade ainda maior quando falamos de mulheres negras – e as contratações ainda são muito desiguais. Que tipo de políticas são necessárias para que as empresas tornem o cenário mais igualitário?
Há várias formas de fazer isso. Primeiro, sempre recomendamos que as empresas façam censos de diversidade étnico-raciais para mapear quantas pessoas negras estão trabalhando, quantas foram promovidas, quantas foram demitidas e se há paridade salarial. Se perguntarmos por alto, a maioria não sabe. Também é preciso ver a percepção dos funcionários sobre essas desigualdades. Algumas acabam se surpreendendo ao ver que existem, sim, diferenças gigantescas em relação ao número de pessoas negras promovidas. Muitas são congeladas: elas entram no cargo de base e permanecem lá durante muito tempo. Outros funcionários também reportam que pessoas brancas que chegaram depois no mesmo cargo foram promovidas com mais frequência. 

Quando fazemos o recorte de raça e gênero, percebemos mulheres ficando muito atrás nesse quadro. Acredito que mudar essa situação tem a ver com ser mais intencional e definir uma linha sucessória, onde há um mapeamento de todas as mulheres negras da empresa mostrando quais são suas habilidades e o que é preciso desenvolver para que elas consigam ocupar cargos de liderança. 

Olhando para o externo, é ideal que esses lugares façam processos seletivos voltados para pessoas negras e isso deve ser reforçado por campanhas anuais e pelo posicionamento ao longo do tempo. Não é só dizer que quer não sei quantos negros trabalhando amanhã, é preciso trabalhar essa temática sempre.

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(Ideias à Venda/Divulgação)
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Um dos pontos da agenda 2030 da Organização das Nações Unidas (ONU) é a redução da desigualdade racial no mercado de trabalho. De que forma nós, como sociedade civil, podemos romper essa estrutura? As políticas públicas são saídas? Como planejá-las de forma efetiva?
Estamos em um ano de revisão das cotas raciais nas universidades e não é só uma pauta da população negra apoiar esse tipo de renovação, porque ainda não chegamos em um momento que podemos dizer que não precisamos mais. A sociedade deve entender as cotas antes de criticá-las. É essencial aprender que esse é um mecanismo de reparação e correção de desigualdades. Elas são feitas para serem temporárias desde que a sociedade se ajuste e se adeque. Ninguém quer ter cotas para sempre, até porque a ideia é que a gente não tenha desigualdade para sempre. 

Nesse sentido, a sociedade civil precisa se engajar nesses movimentos, assinar petições e cobrar as empresas o tempo todo. Essa cobrança precisa ser contínua, não só diante desses episódios de violência – até porque eles acontecem com muita frequência. Acredito que as pessoas que querem colocar o antirracismo em pauta devem agir como se tivessem uma listinha de compras: colar um post it no computador para lembrar de cobrar até que o dia a gente não precise mais. Não temos que ver pessoas negras morrendo para ter uma postura mais efetiva em relação a isso. 

“A sociedade deve entender as cotas antes de criticá-las. Aprender que elas são um mecanismo de reparação de desigualdades, feitas para serem temporárias desde que a sociedade se ajuste e se adeque. Ninguém quer ter cotas para sempre, até porque a ideia é que a gente não tenha desigualdade para sempre”

Luana Génot

Você é jurada do Ideias à Venda. Como foi participar do programa? De que forma você conseguiu aplicar toda sua experiência com as empresas que trabalhou?
Acredito que o que consegui mais aportar – e também aprender – foi ter uma visão holística dos negócios, começando a ver desde a história dos empreendedores, passando pelo protótipo que pode ser moldado por vários caminhos até o resultado final. O bom foi entender a motivação dos participantes, se eles têm um aporte de conhecimento sobre o seu negócio, sobre o cenário que está projetando e se sabem bem sobre seu consumidor. 

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Se alguém chega dizendo que a ideia é para todos, por exemplo, eu tenho as minhas dúvidas porque não acredito em um negócio que seja para todos. Cada um tem um público alvo, mesmo que muitas pessoas que não são daquele público também possam consumir seu produto. O que eu fiz no reality foi levar uma visão provocativa para que esses empreendedores consigam se questionar mais criticamente sobre vários pontos que a gente precisa analisar ao construir uma empresa. 

Qual a importância de ter uma jurada negra e bem sucedida em um reality de empreendedorismo e negócios que será veiculado em diversos países?
É simbolicamente muito importante, mas quero sempre enfatizar que eu não represento o todo. Não dá para usar a minha história para romantizar e dizer que as pessoas conseguem, é só querer. Até porque a história do empreendedorismo brasileiro a partir da perspectiva das pessoas negras passa por um caminho de sobrevivência, e não de planejamento. Espero que seja muito inspirador, mas que não romantize a jornada de uma pessoa negra empreendedora no Brasil – que não é fácil.

“A história do empreendedorismo brasileiro a partir da perspectiva das pessoas negras passa por um caminho de sobrevivência, e não de planejamento. Espero que [a participação no ‘Ideias à venda’] seja muito inspiradora, mas que não romantize a jornada de uma pessoa negra empreendedora no Brasil – que não é fácil”

Luana Génot

Por fim, conta pra gente: quem são as mulheres que te inspiram?
Muitas! Vou falar o clichê que é minha mãe e minha vó, mas posso dizer Luiza Helena Trajano, Leila Velez, Rachel Maia, Erika Hilton e Linn da Quebrada também! São pessoas que conseguiram hackear o sistema e furar bolhas – que é o que eu quero fazer todos os dias.

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