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Arte é sentimento

Conversamos com a artista Marcela Scheid sobre vulnerabilidade, processo criativo e a representação da cor vermelha

por Beatriz Lourenço Atualizado em 30 mar 2022, 09h30 - Publicado em 30 mar 2022 00h23
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(Clube Lambada/Ilustração)

á cinquenta anos, a historiadora da arte Linda Nochlin escreveu um artigo intitulado “Por que não houve grandes artistas mulheres?” Logo de cara, ela afirma que, na própria pergunta, há um equívoco: houve, sim, grandes mulheres artistas. Porém, elas foram escondidas ao longo do tempo em razão da desigualdade de gênero e falta de visibilidade. De lá para cá, o mercado da arte tem feito alguns movimentos de reparação, como preparar exibições exclusivas de mulheres e adicioná-las aos acervos permanentes. 

Mas tudo isso ainda é pouco. Além de menos espaço na área, há a famosa síndrome do impostor, que impede que as artistas se autodenominem como tal, mesmo que sejam incrivelmente talentosas. Marcela Scheid é uma delas e teve que enfrentar seu próprio julgamento quando decidiu desenhar: “Antes de começar a faculdade de design, tinha vergonha do meu traço, achava ele horrível e era muito infeliz porque via pessoas desenhando muito bem e eu não conseguia fazer igual”, revela à Elástica. 

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(Marcela Scheid/Arquivo)

Porém, ao entender que a arte é muito mais do que técnica, percebeu que tinha muito para acrescentar ao mundo e passou a desenvolver seu trabalho. “Apostei na colagem por muito tempo. Até que um dia, saindo de uma aula, comprei um sketchbook [caderno de rascunhos] e comecei a treinar mais. Esse foi um exercício interessante que me incentivou a produzir”, diz. “Quanto mais fui fazendo, mais confiante fiquei. Arte não é sobre técnica, é sentimento”. 

“A gente reprime muitas questões e as guardamos por muito tempo. Depois de anos de terapia, entendi que a forma como poderia trabalhar tudo o que estava aqui dentro era colocando para fora”

Seu trabalho junta ilustrações de mulheres com o tom vermelho e frases que dizem o que muitas de nós sentimos, mas não conseguimos elaborar. São temas difíceis e profundos: a vulnerabilidade, as alegrias e tristezas das relações e as bagagens que carregamos ao longo do tempo. Todas as ideias vêm de suas próprias vivências e de experiências daquelas que estão ao seu redor. “A gente reprime muitas questões e as guardamos por muito tempo. Depois de anos de terapia, entendi que a forma como poderia trabalhar tudo o que estava aqui dentro era colocando para fora”, conta. 

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Em março, a artista levou seu trabalho a outro patamar: atravessou as redes sociais e atingiu novos públicos a partir das colaborações com as marcas Hershey’s e Dzarm. Em uma conversa franca, falamos sobre processos criativos, protagonismo feminino e o exercício da escrita.

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O que te inspira a criar os desenhos e as frases que você publica?
Minhas próprias vivências, bem como a experiência de outras mulheres. A gente reprime muitas questões e as guardamos por muito tempo. Depois de anos de terapia, entendi que a forma como poderia trabalhar tudo o que estava aqui dentro era colocando para fora. Fazer isso nos ajuda a entender esses dilemas e levá-los para um lugar mais palpável. 

Além disso, ler mulheres, consumir mulheres e apoiar seus trabalhos aumenta a gama de visões sobre o feminino – o que acaba refletindo na minha produção. Uma vez, fui em um talk com Paola Vilas e ela comentou que, por muito tempo, a representação das mulheres vinha de homens: eles criaram o nosso imaginário físico e psicológico. As mulheres artistas, por sua vez, acabam pensando um modelo imagético mais real, geralmente baseado nelas mesmas e em quem está à sua volta. Isso porque estamos cansadas de ver homens brancos cis falando sobre nós. 

“Tenho como inspiração minhas próprias vivências, bem como a experiência de outras mulheres. Ler mulheres, consumir mulheres e apoiar seus trabalhos aumenta a gama de visões sobre o feminino”

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Você aborda a vulnerabilidade e as relações que criamos com pessoas à nossa volta. De que maneira colocar todos os medos para fora te transforma?
Me transforma porque tira um certo peso. Guardamos muitas coisas não ditas e vivemos tão reprimidas que, quando falamos, gera um alívio muito grande! E é engraçado a repercussão que isso causa. Depois que comecei a publicar nas redes, muitas pessoas vem me dizer que sentem a mesma coisa mas nunca conseguiram elaborar e colocar para fora. 

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O que a cor vermelha representa para você?
O vermelho começou por uma coincidência. Mas, depois de algum tempo usando a cor, entendi que ele tem uma potência muito forte e é um tom de alerta. Ele grita! Não passa batido em lugar nenhum. Não é uma cor fofa como o azul ou o rosa. Seu uso mostra a sensação de que está acontecendo alguma coisa ali, é quase como se ele falasse: “olhe para mim e veja aqui”. Além disso, também significa uma feminilidade mais contemporânea, que não passa despercebida. O vermelho sai dessa noção patriarcal de uma cor feminina e isso, na minha arte, quer dizer que a mulher pode ser quem ela quiser. 

“Por muito tempo, a representação das mulheres vinha de homens: eles criaram o nosso imaginário físico e psicológico. Mulheres artistas, por sua vez, pensam um modelo imagético mais real, geralmente baseado nelas mesmas e em quem está à sua volta”

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(Marcela Scheid/Arquivo)

O cenário tem sido mais inclusivo para mulheres artistas?
Há grandes artistas mulheres, mas acontece que as pessoas têm muita preguiça de procurá-las. A gente fica com o que está dado nos livros de história, nas galerias e museus – que são, em sua maioria, homens brancos. De um tempo para cá, estamos vendo algum movimento para mudar isso e conquistando mais espaço. Porém, ele é muito inóspito – é um lugar de mais julgamento porque espera-se que você seja dez vezes mais foda. Alguns museus estão criando exibições só de mulheres e deixando-as no acervo, mas isso ainda é muito pouco quando comparamos com o espaço que o homem tem.

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Você fez uma collab com a Hershey’s para ilustrar mulheres na ciência. Conta pra gente dessa parceria??
Essa é uma campanha que está no terceiro ano! No mês de março, foram escolhidas seis artistas mulheres para ilustrar o que é sororidade. A partir daí, eles selecionaram seis áreas de trabalho: ciência, arte, ativismo, esporte, música e empreendedorismo. Isso porque são lugares onde ainda há muita desigualdade e preconceito. Até pouco tempo, por exemplo, a gente não podia participar de jogos esportivos — as legislações de inclusão foram criadas há pouquíssimo tempo. 

Esse trabalho foi muito importante porque a minha vontade é de sair do espectro digital e alcançar novos públicos seja com livros, exposições ou produtos. Foi muito bom ver meu trabalho na rua e a mobilização em cima dele. A ilustração foi para programas de TV como o da Ana Maria Braga e Encontro, o que me emocionou muito. 

“O vermelho significa uma feminilidade mais contemporânea, que não passa despercebida. Sai dessa noção patriarcal de uma cor feminina e isso, na minha arte, quer dizer que a mulher pode ser quem ela quiser”

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(Marcela Scheid/Arquivo)

Qual foi o processo para encontrar sua identidade visual?
Antes de começar a faculdade de design, tinha vergonha do meu traço. Achava ele horrível e era muito infeliz porque via pessoas ao meu redor desenhando muito bem. Aí, a saída foi explorar a colagem como uma forma de expressão. Até que um dia, saindo de uma aula, comprei um sketchbook e comecei a treinar mais. Foi um exercício interessante que me incentivou a produzir, mas é engraçado viver com aquele “erro” dentro do caderno.

A partir do treino, passei a aprimorar meus desenhos, mostrar para amigos e publicar nas redes sociais. Acredito que o processo criativo é uma questão de prática, não uma inspiração divina. Quanto mais eu fui fazendo, mais confiante fiquei. A gente costuma pensar que a arte é uma questão de técnica e isso é um grande erro, ela é sentimento. Eu demorei muito para me entender como artista e falar isso em voz alta. Mulheres têm mais dificuldade de dizer quem são porque a sociedade está sempre denominando para nós. A partir do momento que a gente se diz algo, se torna muito assustador.

Você também fez uma parceria com a Dzarm. Qual é a sua relação com a moda?
Minha parceria com a marca foi lançada no dia 8 de março, Dia Internacional da Mulher. Participei de todo processo de produção, desde as cores até o pensamento das peças e da criação da campanha. Foi muito interessante porque foi tudo um reflexo de quem eu sou, desde o primeiro dia me senti muito em casa. É incrível ver peças que não necessariamente tem estampas minhas, mas que falam sobre mim de alguma forma. 

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Gosto muito de moda como espectadora e adoro acompanhar estilistas mulheres. Acredito que moda é arte e o que vestimos expressa o que somos e o que sentimos. Mas é preciso ressaltar que esse ainda é um espaço muito machista. É assustador estar em um set e a única mulher ser a modelo enquanto todo o resto da equipe é masculina. No fim, são homens criando uma imagem que vai ser consumida por mulheres. É por isso que é cada vez mais importante ter mulheres nesse espaço. 

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(Marcela Scheid/Arquivo)

Escrever o que a gente sente pode ser difícil, mas transformador. Quais são as dicas que você dá para quem quer colocar o coração no papel?
Uma vez, fiz uma sessão de terapia em que a psicóloga disse para escrever em um caderno as coisas antes de ter uma conversa ou quando queria entender algo sobre mim. Lembro de um caso específico em que queria falar o que estava sentindo para um ex-namorado e, quando coloquei no papel, entendi que o que tinha escrito era mais sobre mim do que sobre ele. 

A palavra nos diz muito e fazer esse exercício sem necessariamente enviar para alguém é muito enriquecedor. A minha dica é: crie uma agenda ou um bloco de notas e escreva sem preocupação, julgamento ou linearidade. Isso trará muito aprendizado!

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