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Entre leitos, o medo e a esperança

Após dois anos da pandemia, conversamos com profissionais de saúde para refletir sobre suas memórias, o negacionismo e as perspectivas a partir de agora

por Heloisa Aun Atualizado em 21 mar 2022, 16h50 - Publicado em 21 mar 2022 01h45
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ois anos, mais de 29 milhões de casos e mais de 657 mil mortes. A covid-19 no Brasil escancarou desigualdades, evidenciou o fracasso do governo federal e mostrou que não há como lutar contra uma pandemia dessa proporção com estratégias individuais, mas sim, coletivas. Para quem está desde o início na linha de frente no combate à doença, esses 24 meses representaram, para além das centenas de horas de trabalho, uma enxurrada de emoções, dificuldades e inúmeras histórias de perda, medo e esperança.

Quando é seu plantão, o técnico em enfermagem Joseildo da Silva Batista tem o costume de passar por todos os leitos e conversar com os pacientes, perguntar se estão bem e quebrar um pouco o clima de tensão. Entre tantas situações difíceis que presenciou na UPA (Unidade de Pronto Atendimento) em que trabalha, na cidade de Campina Grande, na Paraíba, a que mais o marcou foi a de um homem com quem brincava que iria jogar futebol ao sair do hospital. “Naquele dia, falei com o senhor, fui tomar café da manhã e, ao voltar, ele tinha ido a óbito. Fiquei muito triste”, lembra, emocionado.

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“As pessoas confiavam demais na gente, pois ficavam internadas sozinhas. Nós éramos o elo delas com o mundo”, acrescenta o profissional. Joseildo acredita que a pandemia transformou sua forma de ver a vida. “Nós entendemos o quanto somos frágeis diante de uma doença da qual não temos controle, que não é uma gripe e não tem tratamento, apesar de felizmente hoje ter a vacina”, completa.

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A enfermeira Karina Guzzo sentiu na pele os impactos do começo da pandemia. Precisou distanciar-se da família para protegê-la, teve crises de insônia e viu a morte de perto. “Foram dias difíceis até a tão esperada vacina. Nós, profissionais da saúde, lidamos com situações tensas”, indaga. Hoje, ela atua em um hospital particular de São Paulo e, no lugar de tanta tristeza que presenciou, prefere focar nas situações positivas. “Cada paciente que sai de uma intubação e do risco de morte é extremamente gratificante.”

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(Gerson Salvador/Arquivo)

O médico Gerson Salvador, especialista em infectologia e saúde pública, reflete que, antes de 2020, havia uma discussão sobre a necessidade de um sistema público de saúde organizado, adequadamente financiado e com melhores recursos humanos, e da universidade pública e centros de pesquisa. “Estávamos no caminho certo. Agora, vivemos em uma epidemia de egoísmo, só que nesse contexto social não tem saída boa para o indivíduo”, enfatiza ele, que trabalha no Hospital Universitário da Universidade de São Paulo (HU-USP), dá aula para a graduação e escreve o blog Linha de Frente, da Folha de S.Paulo.

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Formado em Medicina pela USP, Gerson estava no segundo ano da residência em Infectologia no Hospital das Clínicas na época da pandemia do H1N1. “O HC recebeu os casos mais graves de São Paulo, então precisamos organizar o nosso serviço no setor. O principal aprendizado daquela época, falando como indivíduo, foi reconhecer a minha própria ignorância. Como profissionais, a gente aprendeu a lidar com pacientes e a ser críticos em relação às informações que recebemos. E isso fez total diferença agora na covid”, conclui.

“Estávamos no caminho certo. Agora, vivemos em uma epidemia de egoísmo, só que nesse contexto social não tem saída boa para o indivíduo”

Gerson Salvador, médico
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Memórias do front

Foram dois anos de sacrifício, trabalho e lágrimas para a técnica em enfermagem Ana Carla Santos, nascida em Recife, capital de Pernambuco. Ela pegou covid-19 quatro vezes, descobriu ser mais forte do que pensava e começou a valorizar a vida e sua família. “Tive que me adaptar a uma rotina nova, enfrentar o medo do desconhecido e informar a comunidade quanto aos cuidados com essa doença e a importância da vacina”, ressalta a profissional, que trabalha na clínica pediátrica do Hospital Geral de Itapevi, em São Paulo.

De um dia para o outro, toda a estrutura do hospital foi alterada e a instituição passou a atender apenas covid-19. “Não houve um primeiro caso, chegaram vários de uma só vez e eu fui a responsável por eles. Estava muito assustada, usava duas máscaras, dois pares de luvas, um avental e outro impermeável por cima. O primeiro óbito que eu presenciei foi de uma criança que tinha outras doenças crônicas, ela estava bem debilitada”, recorda.

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(Ana Carla Santos/Arquivo)

Mas o caso que mais a impactou foi o de um homem de 39 anos. “Eu estava na enfermaria e um médico pediu para que descesse com um paciente para a UTI [Unidade de Tratamento Intensivo]. Ele estava saturando 75%. Ao colocá-lo na maca, a esposa ligou e os dois conversaram. Ele contou que estava indo para UTI e que logo iria voltar. Esse rapaz foi intubado e faleceu dias depois”, narra.

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No Hospital Universitário em Petrolina, sertão de Pernambuco, o médico Pedro Carvalho Diniz estava de plantão quando uma paciente, chamada Jéssica, chegou em estado grave e com medo da doença, perguntando apenas sobre o resultado de seu teste. Dois dias depois, foi intubada. “Conversamos muito antes do procedimento. Ela chorava demais”, lembra. Após duas semanas, por coincidência, ele foi responsável por extubá-la.

“Eu havia brincado com ela: quando você sair e melhorar, a gente vai dançar forró”, acrescenta Diniz, que é de Belo Horizonte, mas vive no sertão desde 2013, onde teve seus dois filhos. Dito e feito: ao perceber a paciente desanimada, o médico a levantou e eles dançaram a música “Asa Branca”, de Luiz Gonzaga, levando um pouco de humanidade para aquele momento tão difícil. “Tem pacientes que marcam a nossa vida”, afirma.

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De acordo com Pedro, o hospital em que atua sempre trabalhou com superlotação dos leitos, porque é responsável por atender cerca de 350 municípios entre a Bahia e Pernambuco, regiões com uma desigualdade social enorme. “No início, com as notícias que chegavam de outras cidades do país, meus colegas estavam com medo e não queriam ir para a linha de frente. Foi então que fiz um vídeo e fui o primeiro a me candidatar para a UTI de covid-19. Não me vejo passando por essa crise sem fazer a minha parte como médico.”

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Os plantões na UTI eram de quadros muito graves, com uma rotatividade imensa por óbitos e o medo do próprio profissional se infectar. “É uma tensão absurda de se paramentar, banho de álcool em gel, sem poder coçar o olho. Teve um plantão que fiquei 19 horas paramentado, sem ir ao banheiro e comer. E estava cheio de pacientes gravíssimos”, relembra.

“Eu havia brincado com ela: quando você sair e melhorar a gente vai dançar forró”

Pedro Carvalho Diniz, médico

Na linha de frente do Hospital Universitário da USP, o infectologista Gerson Salvador atendeu seu primeiro caso suspeito de covid-19 no começo de março de 2020, de um rapaz que veio da Espanha e estava com sintomas gripais. Na ocasião, não haviam exames disponíveis. Ao longo dos dias e meses, muitas cenas marcaram seu cotidiano como médico. “A emergência é um espaço dramático, que muda a vida das pessoas, então presenciamos mensagens de amor, de despedida… Carregamos suas histórias.”

A primeira paciente que Salvador intubou foi uma mulher de 44 anos, cuidadora de idosos. Uma mulher negra, que morava na casa dos patrões e cuidava da família. Esse ocorrido não saiu de sua cabeça, pois era um momento em que falávamos para as pessoas ficarem em casa isoladas, mas muitos não tiveram essa opção. “A doença entrou no Brasil pela elite, rapidamente se disseminou e começou a causar quadros graves entre pobres, negros e quem vive nas periferias”, pontua.

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(Intervenção em foto de Anna Shvets/Pexels)

Uma doença desigual

A luta contra a invisibilização da saúde da população negra é o que move Vinícius Miranda, nascido em Salvador e morador de Santo Antônio de Jesus, uma cidade no interior da Bahia. Ele é formado em 2019 na primeira turma de Medicina da Universidade Federal do Recôncavo Baiano (UFRB), conhecida pela inclusão e diversidade. “A nossa turma foi considerada a mais preta da história do país.” Hoje, atua como médico generalista no SUS em seu município e é residente de Medicina de Família e Comunidade.

Com o início da pandemia, Vinícius foi convidado para fazer parte da equipe de combate ao covid-19, sendo o médico gestor responsável da cidade. Se não estava atendendo, atuava no nível de gestão, por exemplo, estabelecendo protocolos e medidas de proteção. “A cidade foi a última da região a confirmar um caso positivo. Isso gerou uma comoção. Temos 18 mil habitantes e o nome do paciente circulou entre os moradores. Conseguimos isolá-lo e não gerar uma contaminação em massa”, afirma.

É no contato diário com os pacientes que o médico percebe que, em qualquer situação de crise, as populações vulneráveis serão sempre as mais atingidas, pois historicamente já vivem em uma policrise: econômica, sanitária, moral, social e política. “A pandemia intensificou as desigualdades. Quem morreu por falta de oxigênio em Manaus ou ficou na fila de uma UPA esperando por atendimento foram os pobres.”

“A pandemia intensificou as desigualdades. Quem morreu por falta de oxigênio em Manaus ou ficou na fila de uma UPA esperando por atendimento foram os pobres”

Vinícius Miranda, médico
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Segundo ele, para a população negra existe um racismo que está nas estruturas, como na dificuldade do acesso à saúde, ao isolamento e à informação. “Nesses anos, o que foi feito para essa população veio a partir dos movimentos sociais. Com isso, conseguimos observar o que era óbvio: no Brasil, quem mais morreu de covid foram as pessoas pretas. Para os negros, nunca houve a possibilidade de um cuidado digno.”

Um caso que marcou Vinícius na pandemia evidenciou essa desigualdade. Certo dia, recebeu uma paciente que estava com suspeita da doença e precisaria ser isolada. “Ao questioná-la se era possível fazer isolamento em casa, ela disse que não, porque morava em uma casa com dois cômodos com toda a família. Isso me impactou, uma vez que eu estava dando essa orientação para alguém que o mais importante naquele momento era poder comer”, analisa.

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(TV Paraíba/Reprodução)

Através da vacina

Joseildo Batista foi o primeiro a ser vacinado em Campina Grande, que tem 402 mil habitantes. O convite chegou na tarde de uma segunda-feira e logo na terça-feira recebeu a primeira dose do imunizante. “Fiquei feliz, em êxtase, por poder ficar perto da minha mãe e voltar a ter esperança. Não sabia se chorava ou se sorria. Vimos tantas vidas perdidas por causa do atraso na imunização”, recorda.

Devido à idade avançada e aos problemas de saúde de sua mãe, o técnico em enfermagem chegou a montar um local improvisado para dormir no terraço da casa em que vive com a família. Com a repercussão, ele conseguiu um quarto de hotel para se hospedar durante aquele momento crítico.

Ao mesmo tempo, a sensação do início da vacinação foi ambígua para Pedro Diniz. Quando começou a imunização, em fevereiro de 2021, ele sentiu um alívio, pois seus pais têm mais de 70 anos e não via a hora de estarem protegidos. “Lembro de receber a vacina e pensar que queria que meu pai, minha mãe e minha irmã, que está em tratamento oncológico, recebessem também.”

“Ao questioná-la se era possível fazer isolamento em casa, ela disse que não, porque morava em uma casa com dois cômodos com toda a família. Isso me impactou, uma vez que eu estava dando essa orientação para alguém que o mais importante naquele momento era poder comer”

Vinícius Miranda, médico
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Depois da esperança, em abril e maio do mesmo ano o Brasil entrou na pior fase da pandemia. Racionalmente, o médico sabia que os casos graves eram entre não vacinados, que estavam perto de tomar pela idade ou que “ouviram o presidente”. “Ao iniciar, a vacinação foi um vexame. No auge daquele ano, tinham variantes, mortes e eu só pensava: não tem como isso acabar”, conta.

“Era uma sensação da gente estar à deriva como país. Ele [Jair Bolsonaro] precisava ter feito muito pouco, como comprar vacina e estimular que as pessoas se protegessem e usassem máscara. Ele não cumpriu nada disso e ainda fez piada. Eu tinha vergonha e raiva ao assistir aquilo”, finaliza Diniz.

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(Joseildo/Arquivo)
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Negacionismo mata

Embora o termo negacionismo tenha tomado as discussões nos últimos dois anos, lidar com esse tipo de conduta precede o cenário de 2020, segundo o infectologista Gerson Salvador. “Em 2018, eu fiz uma consultoria para um vídeo do Felipe Castanhari, do canal Nostalgia, sobre o negacionismo contra as vacinas de maneira geral. Essa questão já estava na ordem do dia desde as fake news da relação da vacina do sarampo com o autismo”, relata o médico.

O movimento antivax é muito organizado em alguns países, como Inglaterra e Estados Unidos, e chegou a ser introduzido no Brasil há alguns anos, de forma mais branda. “O povo brasileiro no geral admira as pessoas que estudam e têm conhecimento. E nós acreditamos nas vacinas, amamos o Zé Gotinha”, lembra.

Enquanto nos demais países os governos fazem campanha para todos se vacinarem, nós vivemos uma situação oposta, em que grupos de dentro do poder divulgam ideias equivocadas que vão contra o controle da pandemia. “O objetivo deles é manter a situação descontrolada, mas, mesmo em setores bolsonaristas, a taxa de vacinação é alta. Para mim, o negacionismo foi derrotado no Brasil”, opina.

“O povo brasileiro no geral admira as pessoas que estudam e têm conhecimento. E nós acreditamos nas vacinas, amamos o Zé Gotinha”

Gerson Salvador, médico
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Ainda de acordo com o médico, a porcentagem de pessoas que não se vacinam é mais expressiva nos grupos com maior poder aquisitivo e taxa de escolaridade alta. Porém, do ponto de vista do impacto na sociedade, quem tem dinheiro se expõe menos ao vírus, na média, porque não pega transporte público, trabalha em ambientes protegidos e, caso contraia a doença, tem acesso a serviços hospitalares com melhor estrutura. “A pandemia acaba acometendo de maneira desproporcional a população pobre e os negros.”

Em um plantão na sala de emergência, Pedro Diniz lembra de um senhor de 90 anos que foi internado, intubado, e quando fizeram teste de covid-19, deu positivo. Ao falar com os filhos do paciente, o médico questionou: “Ele se vacinou?”. A filha respondeu que não, nem ela nem o pai tomaram o imunizante porque ficaram com medo. “Foi nítido o arrependimento e a culpa na expressão dela ao falar comigo.”

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Para Diniz, o negacionismo ainda é um dos aspectos que afeta sua esperança de que tudo isso vá terminar. “É desesperador você receber ou ler em grupos uma postagem fake news que tenha milhares de compartilhamentos. Se tratando de um colega médico, então, é um negócio… Estamos tendo que falar o óbvio. A desonestidade intelectual é que irrita, de quem sabe que está propagando mentiras.”

Antes do negacionismo da vacina, existe o negacionismo da própria doença, como lembra o médico Vinícius Miranda. “Como se ela não existisse, tivesse sido criada pelo laboratório chinês ou inventada pela mídia para causar pânico na população, e até a própria crença em medicamentos sem eficácia comprovada”, indaga. “O negacionismo matou. Muitas pessoas poderiam estar aqui se a pandemia tivesse sido encarada de forma séria desde o início.”

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“O negacionismo matou. Muitas pessoas poderiam estar aqui se a pandemia tivesse sido encarada de forma séria desde o início”

Pedro Carvalho Diniz, médico

O médico de Santo Antônio de Jesus prefere lidar com essas questões por meio da educação e didática. “Conversei com alguns pacientes, que só se vacinaram após tirarem dúvidas comigo”, reitera. Na gestão do município, inclusive, ele teve o poder de decisão sobre quais medicamentos estariam no protocolo e barrar o uso daqueles sem eficácia comprovada.

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Quem cuida de quem cuida

Muito se falou sobre o cuidado com a saúde mental em meio às incertezas da pandemia, mas e quem cuida de quem cuida da vida da população? Nos últimos anos, Pedro Diniz viu sua depressão piorar. Na rotina intensa de plantões, quase não dava tempo para se emocionar, pois, primeiro acolhia e resolvia o caso, depois lidava com esses impactos psicológicos. “Eu vivi uma certa aridez de secura”, revela. “Entrei em exaustão, burnout, mesmo sem tempo para sentir isso.”

Dar a notícia para a família do óbito ou da gravidade do quadro dos pacientes sempre era péssimo. “A morte de um paciente, que pegou covid-19 da mãe, me marcou demais. A gente tentou de tudo e ele parou de responder ao tratamento e veio a óbito. Eu dei a notícia para a filha dele, no viva voz do telefone, e ela respondeu: ‘Obrigada por tudo’. Isso quebra a gente. Uma enfermeira começou a chorar no mesmo segundo.”

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(Pedro Carvalho Diniz/Arquivo)

Assim como Pedro, Gerson Salvador encarou esse período com uma ideia em mente: a obrigação ética de estar ali. O infectologista chegou a pegar o vírus no começo da pandemia, em março de 2020, mas felizmente sua esposa, que estava grávida, não se infectou. O estresse e os plantões exaustivos, com noites longe de casa, trouxeram dificuldades pela indisponibilidade e a preocupação frequente com a família.

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Sem acompanhamento psicológico, ele lidou com as tristezas e usou sua preparação técnica para enfrentar esse nível de crise. “Apesar do cansaço, estive preparado para dar o meu melhor, tanto do ponto de vista clínico e de ensino, como no argumento de ideias e posicionamentos públicos”, diz. “Então, quando eu consigo dormir, durmo tranquilo”, completa. Hoje, está um pouco mais cansado, com alguns cabelos brancos a mais, mas com a cabeça leve e com a necessidade de estar junto à esposa e aos três filhos pequenos.

“Quem cuida dos outros, muitas vezes, acaba esquecendo de cuidar de si próprio”

Vinícius Miranda, médico

O médico Vinícius Miranda acabou negligenciando sua saúde mental em diversos momentos, sobretudo sob a pressão da pandemia. “Quem cuida dos outros, muitas vezes, acaba esquecendo de cuidar de si próprio.” Foram inúmeros os dias em que dormiu extremamente abatido, seja pelo cansaço físico, mental, pela preocupação de se contaminar ou infectar pessoas próximas, além do medo de perder amigos e parentes.

Ao perceber essa situação, decidiu estabelecer alguns acordos com ele mesmo, como encontrar os pais de vez em quando, após ser testado. “Para recuperar minha saúde mental, ‘esqueci’ que sou médico por algumas horas e deixei de ver tudo relacionado à doença. Eu achava importante me distanciar para conseguir lidar”, reflete.

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(Anna Shvets/Pexels)

Luz no fim do túnel

O surgimento da variante ômicron, a mais transmissível que conhecemos até então, e o aumento explosivo de positivados trouxeram incertezas na virada de 2021 para 2022. “Temos alguns cenários atualmente: uma subnotificação, porque só conseguimos testar casos graves, um aumento crescente de mortes, porém, proporcionalmente menor, já que a população está vacinada, e, por último, o grande número de crianças infectadas, sendo uma minoria delas com diagnósticos graves”, pontua o infectologista do Hospital Universitário da USP.

Gerson Salvador reitera que estamos vendo um número grande de casos entre pessoas que não tomaram nenhuma dose do imunizante ou que não completaram o esquema vacinal, além de uma parcela de vacinados que, por alguma questão relacionada a sua imunidade, não consegue ter uma resposta excelente ao vírus. “No município de São Paulo, dados preliminares apontam para uma desaceleração. De qualquer maneira, há mitos em torno da ômicron, como que é leve, não afeta o pulmão e só morrem pessoas com comorbidade, o que são afirmações equivocadas. Essa ‘muita gente’ está desafiando o sistema de saúde do país.”

Para o médico, não é possível traçar um prognóstico de curto e médio prazo em meio a uma pandemia, pois o vírus está o tempo inteiro sofrendo mutações. “Essas mutações, eventualmente, provocam uma evasão da resposta imune, tanto aquela causada pela vacina, como pela infecção prévia. No longo prazo, o que vai acontecer é uma situação de equilíbrio e o sars-cov-2 vai circular de maneira sazonal e não desafiar o sistema de saúde, assim como outras doenças respiratórias”, explica.

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A situação da UPA em que Joseildo Batista atua como técnico em enfermagem melhorou bastante com a vacinação. “A ocupação de leitos está abaixo de 50% e a quantidade de altas é bem maior. O que nos deixa tristes são aqueles que não se vacinaram e acabam perdendo a vida”, mostra. Em comparação a outras fases da pandemia, está bem mais tranquilo, principalmente por sua família ter se vacinado.

“Eu olho para o amanhã com esperança de que a gente tenha uma luz no fim do túnel para vencer essa pandemia e que as pessoas deixem de negar a ciência. A gente não sabe o que vai acontecer, por isso, temos que continuar nos protegendo”, completa o profissional. Também técnica em enfermagem, Ana Carla Santos tem pensamento similar a Joseildo. É visível a melhora no cenário atual. “Isso tudo vai passar. Pode levar um tempo, e talvez ainda se percam algumas vidas, infelizmente. Mas continuaremos lutando, e acredito que um dia voltaremos a sorrir sem máscaras.”

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