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A normalização da pele não perfeita

Como o movimento “Pele Livre” empodera mulheres com acne, manchas e marcas no rosto e promove uma visão mais acolhedora e democrática sobre nossa aparência

por Giuliana Mesquita 11 ago 2020 01h31
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(Clube Lambada/Ilustração)

Sempre sofri muito com minha pele. Na escola, os meninos que eu gostava me zuavam, as pessoas não queriam ficar perto de mim porque achavam que minha acne era contagiosa. Já me torturei muito, dava tapas na minha cara achando que ia resolver”, lembra Marcela Theodoro, que tem acne desde os sete anos de idade. A busca por uma pele perfeita faz com que mulheres e homens se submetam a tratamentos caros  – e muitas vezes invasivos – para atingir um resultado que nem sempre é suficiente ou duradouro. Para combater essa pressão social e estética, surgiu movimento “Pele Livre” (ou skin positivity) que prega a quebra, ainda que inicial, dos padrões de corpo que vimos emergir nos últimos anos. 

Apesar da pouca idade, Marcela é um bom exemplo do que a geração Z está fazendo com estigmas e padrões enraizados na sociedade. “Meu processo todo de aceitação foi quando raspei a cabeça em 2017. Eu era muito refém do meu cabelo, era refém da maquiagem pesadíssima que eu usava até para atender uma ligação de Facetime. Até que comecei, aos poucos, a me libertar dessa prisão”, continua. “Eu comecei a ir para a escola sem maquiagem com 17 anos, já tinha alguns seguidores no Instagram e acabei conhecendo pessoas que admiravam minha beleza natural”. O senso de representatividade e comunidade e as mensagens de encorajamento vindas de fotos de rosto sem maquiagem ou edição de Photoshop fizeram com que Marcela continuasse a trilhar esse caminho. “Eu sou do ramo da maquiagem e, ao entrar no Explorar do Instagram, você só vê mulheres com peles perfeitas e reluzentes”, completa.

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(Marcela Theodoro/Arquivo)

A ideia de que uma pele acneica só se dá pelo descuido, pela falta da ingestão de água, por problemas de alimentação ou pelo excesso de sebo também contribui para que esses rostos “diferentes” daqueles que vemos nas propagandas de maquiagem sejam vistos com preconceito. “Na última vez que fui ao Pronto Socorro, a médica que me atendeu me perguntou se eu já havia pensado em tratar minha acne”, lembra Kéren Paiva, um dos nomes e rostos que encabeçam o movimento “Pele Livre” no Brasil. “Trato minha acne desde os 11 anos de idade”. A história dela é parecida com a de Marcela: sua acne persiste desde a pré-adolescência e ela já tentou diversos tratamentos, inclusive com o Roacutan, recomendado apenas para casos mais severos. Após nove meses de tratamento, a acne voltou pouco tempo depois que ela parou de tomar o remédio. “Foi aí que eu percebi que eu não podia ficar esperando ficar com o rosto ‘perfeito’ para começar a viver”, diz.

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Entender os padrões de beleza impostos pela sociedade e se libertar deles é um caminho sem volta. “A partir do momento que a gente para pra questionar padrões, a gente não para nunca mais. Virou uma chave na minha cabeça. Falar sobre isso abertamente fez com que eu entendesse que não tem nada demais ter acne”, continua Kéren. Ao começar a ler sobre o movimento, percebeu que era urgente que ele chegasse ao Brasil com mais força – e assim, em dezembro de 2019, ela passou a conversar com suas seguidoras sobre o assunto.

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(Kéren Paiva/Arquivo)

“A partir do momento que a gente para pra questionar padrões, a gente não para nunca mais. Virou uma chave na minha cabeça. Falar sobre isso abertamente fez com que eu entendesse que não tem nada demais ter acne”

Kéren Paiva
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Coincidentemente, a quebra de padrões de corpo causou também em Júlia Vecchi questionamentos sobre sua pele. A criadora de conteúdo conta que a acne apareceu em sua vida já mais velha, quando tinha cerca de 24 anos e engordou. “Quando comecei a entender meu corpo e a conhecer o mundo do body positivity, esqueci da minha pele. Ela começou a me incomodar algum tempo depois, mas eu já estava nesse processo de encontrar o amor próprio”, conta. Júlia lembra que perdeu alguns trabalhos como modelo e influenciadora por conta da sua pele, o que a fez questionar se a revolta era por conta das influências exteriores. “Até que ponto as pessoas que me chamam por causa do meu corpo estão realmente se importando com autocuidado e auto-estima se elas não querem uma mulher com espinhas em suas campanhas?”, indaga. 

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(Júlia Vecchi/Arquivo)

Apesar da inclusão de corpos maiores e dissidentes já ser explorada por algumas marcas há alguns anos, ainda é difícil ver uma modelo com pele acneica ou marcada em fotos de campanha ou no feed até dos Instagrans moderninhos. “A beleza como a gente conhece está passando por um momento meio esquizofrênico. A gente quer trazer consciência, falar que é legal mostrar sua pele natural e suas imperfeições, mas ao mesmo tempo existe o consenso de que as consumidoras querem ver peles perfeitas nas campanhas”. Quem opina é Álvaro Bigaton, designer e dono do perfil de Instagram especializado em beleza Fera Macia, onde divide dicas de cuidados com a pele e reviews de produtos. Ainda que as marcas não usem pessoas com peles não-perfeitas em campanhas de produtos de skincare, é importante que, pelo menos em suas redes sociais e em ensaios fotográficos de branding, essas pessoas sejam incluídas.

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“Para mim, o movimento ‘Pele Livre’ é mais sobre positividade e menos sobre ter orgulho, sobre se opor a maquiagem. É sobre ter uma aceitação de si”

Álvaro Bigaton

Ser um homem no mundo da beleza costuma ser visto com estranheza, já que esse mercado ainda é visto como “coisa de mulher”. “Não sinto muito preconceito porque meu público é majoritariamente feminino. O que sinto é que minha voz e minha presença, que nunca foram submetidas pelo mesmo tipo de pressão estética que as mulheres, faz com que elas percebam que podem fazer makes artísticas, não só corretivas, e se libertar dessa prisão”, comenta Álvaro. Assim que lançou seu perfil, se perguntou se poderia falar de cuidados com a pele mesmo em meio a uma crise de acne. “Para mim, o movimento ‘Pele Livre’ é mais sobre positividade e menos sobre ter orgulho, sobre se opor a maquiagem. É sobre ter uma aceitação de si.”

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(Álvaro Bigaton/Arquivo)

Consultório médico

No desespero de “resolver” as condições da pele rapidamente, muitas pessoas acabam partindo para métodos invasivos e que não são exatamente recomendados para seus casos específicos. “Eu trabalho para que minhas pacientes tenham uma visão mais positiva em relação a suas peles, com menos cobrança e perfeccionismo. A maior parte das peles tem alguma questão que foge à perfeição, isso é o mais comum”, explica a Dra. Patricia Silveira, dona do perfil Dermagreen, que aposta em uma dermatologia verde e integrativa que une nutrição, endocrinologia e psicologia. Para ela, entender e explicar ao paciente quais são as causas daquela condição da pele é importante para que ele não espere um resultado definitivo. “Até que ponto você precisa fazer tratamentos agressivos e caros, e às vezes com risco de efeitos colaterais, para buscar essa pele perfeita?”, questiona. “Às vezes, você faz isso tudo e não necessariamente tem um resultado duradouro, porque a mudança não é só na pele, mas num contexto geral de saúde”.

No consultório de Patricia, esse tratamento multidisciplinar também ajuda os pacientes com acne severa a curar o aspecto emocional, ou seja, como essa pele é vista e aceita. “Tem várias formas de resgatar essa tolerância e essa compaixão com a nossa pele. Aprender a amar o imperfeito”, explica. A dermatologista explica que o uso de medicamentos mais pesados é prescrito somente em casos em que a acne severa tem carga genética alta e está marcando permanentemente a pele – mas comenta que há, sim, uma banalização do Roacutan e de seu uso. Ainda segundo Patrícia, as mulheres passam por dois tratamentos contínuos contra a acne: primeiro é prescrito o anticoncepcional e, depois de adultas, elas costumam tomar o Roacutan intermitentemente em doses baixas. 

“As pessoas lidam com o remédio como se fosse muito suave, como se fosse a solução de todos os problemas. A real preocupação deveria ser a saúde da pele. Depois que entendi isso, nunca mais tive auto estima baixa por causa da minha acne”, conta Preta Araújo, atriz e criadora de conteúdo que também faz vídeos falando sobre suas acnes.  Após descobrir que as mudanças na sua pele eram causadas por estresse e hormônios, ela encontrou paz. “Eu brinco, dou nome pras espinhas. Sempre tive essa relação de brincadeira”, lembra. “Sei que o problema da minha acne não é falta de limpeza ou sujeira. Independentemente do que eu faça, elas estarão lá – às vezes mais agravadas, às vezes menos.”

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“As pessoas lidam com o remédio como se fosse muito suave, como se fosse a solução de todos os problemas. A real preocupação deveria ser a saúde da pele. Depois que entendi isso, nunca mais tive auto estima baixa por causa da minha acne”

Preta Araújo

A normalização dessa pele “imperfeita” em uma sociedade pautada por Facetune e filtros de Stories do Instagram que enchem o rosto de blur é corajosa – e reconhecida por quem não se vê representado em nenhum outro canal. “Já aconteceu até de dermatologista chegar na minha caixa de mensagem me oferecendo tratamentos. A questão não deveria ser essa”, rebate Preta.

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(Preta Araújo/Arquivo)

Questão de classe

A massificação dos cuidados com a pele passaram da derrocada das bases ultrapesadas até o surgimento de marcas que exaltam uma “beleza mais natural”. A rotina coreana de cuidados, conhecida como K-Beauty, globalizou – assim como a pele perfeita que acompanha as campanhas de hidratantes, séruns, essences, tônicos, cremes para os olhos, máscaras e águas micelares. Ter uma rotina de skincare longa e complicada virou o sonho de muitas meninas que amam beleza e acabaram trocando a prisão das maquiagens pesadas pela igualmente padronizada e autoritária rotina de cuidados com a pele. Acontece que esses rituais têm um preço, literalmente, e ele não costuma ser dos mais baratos, o que acaba deixando de lado grande parte da população. 

“Em 2018, minha mãe me levou no dermatologista, que logo me indicou o Roacutan. Eu falei que não iria tomar um remédio que poderia me trazer complicações de saúde e que a gente não podia pagar”, lembra Marcela Theodoro, a mulher de apenas 19 anos que já quebrou mais padrões que muito millennial de 30+. “Hoje, passo só um Leite de Rosas na pele, ou uma água micelar quando tenho dinheiro. Desde que saí de casa e comecei a pagar minha contas, comecei a gastar com outras coisas”. Fica, então, o lembrete: saber que uma rotina extensa de várias etapas ainda é privilégio de uma pequena parte da população e normalizar uma pele imperfeita é desprender, pouco a pouco, pessoas de padrões ainda bastante elitistas e patriarcais.

https://www.instagram.com/p/CATmVXHFMB4/

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