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Sexo, máscaras e álcool em gel

A vulnerabilidade e os riscos na rotina das trabalhadoras do sexo de Belo Horizonte durante a pandemia

por Juliana Afonso e Nina Rocha Atualizado em 13 ago 2021, 17h29 - Publicado em 12 ago 2021 00h02
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(Clube Lambada/Ilustração)

uando Lorena Paiva recebe um cliente em seu apartamento no bairro Caiçara, noroeste de Belo Horizonte, em Minas Gerais, vários processos de higienização já aconteceram no ambiente. A trabalhadora do sexo de 57 anos sempre foi caprichosa com assepsias e, por isso, a pandemia não mudou tanto sua rotina. “Sou chata com limpeza. Os meus clientes nem percebem, mas a cada atendimento troco lençol, toalhas e carrego sempre álcool em gel e lenços umedecidos. Já era um costume”. Para ela, uma mulher trans que já passou por muitas dificuldades quando trabalhou nas ruas, a internet facilitou o contato com o público. “Me sinto mais segura e menos exposta. Tenho clientes que atendo há 30 anos, então já temos uma relação de confiança. Agora, durante a pandemia, não tenho aceitado novos clientes. Se são homens jovens, então, já falo que não estou atendendo, pois não sei se eles estão se cuidando”.

Álcool 70% e máscaras protetoras se tornaram materiais de trabalho indispensáveis, ao lado das camisinhas. Os itens não faltam na mesa do quarto de Lorena. Durante a pandemia foi preciso redobrar os cuidados – e aconselhar os clientes a fazerem o mesmo. Lorena não aceita que seus clientes retirem a máscara na hora do sexo –
Álcool 70% e máscaras protetoras se tornaram materiais de trabalho indispensáveis, ao lado das camisinhas. Os itens não faltam na mesa do quarto de Lorena. Durante a pandemia foi preciso redobrar os cuidados – e aconselhar os clientes a fazerem o mesmo. Lorena não aceita que seus clientes retirem a máscara na hora do sexo – (Isis Medeiros/Fotografia)

Ao atender alguém que está desprotegido, Lorena adverte: “Você se importa de usar a máscara?”, sempre com um tom cuidadoso. Ela conta que, ao longo dos meses de pandemia, não enfrentou problemas em relação a isso. “É o jeito que a gente fala. Muitos dos meus clientes já são mais velhos e, quando não querem usar máscara, eu digo: você já tem uma idade, eu também não sou novinha, vamos viver mais para poder nos divertir mais vezes?”. Para essas ocasiões, ela reserva máscaras descartáveis que adquire por conta própria ou retira na Secretaria Municipal de Saúde. “A prefeitura disponibilizou para a gente sabonetes, vidros de álcool em gel e máscaras. Se o cliente não tem, até deixo que eles levem. É uma forma de eles se sentirem acolhidos, saber que estou cuidando deles”, conta.

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“Me sinto mais segura e menos exposta. Tenho clientes que atendo há 30 anos, então já temos uma relação de confiança. Agora, durante a pandemia, não tenho aceitado novos clientes. Se são homens jovens, então, já falo que não estou atendendo, pois não sei se eles estão se cuidando”

Lorena Paiva

Durante o ano de 2020, Lorena não sentiu muito impacto nos atendimentos que realiza. Este ano, as coisas foram um pouco mais complicadas. “Ano passado foi como se nem tivesse pandemia. Agora, o número de clientes diminuiu porque todo mundo está sem dinheiro”. Ainda assim, ela não enfrenta dificuldades econômicas pois tem um público fixo, que a procura toda semana. “Às vezes, faço dois ou três atendimentos por dia, às vezes fico dias sem trabalhar, mas tenho uma organização financeira que aprendi com a vida, porque saí de casa muito nova. Hoje, me preocupo mais com a qualidade do que com a quantidade. Tenho clientes fiéis que às vezes me pagam 500 reais”. Ativa pelos direitos das mulheres trans e das trabalhadoras do sexo, Lorena sempre tenta incentivar suas colegas a se planejarem de acordo com os gastos e ganhos mensais.

Grande parte dos clientes que Lorena recebe em seu apartamento são antigos conhecidos. A cada atendimento, novos lençóis, toalhas e lingeries –
Grande parte dos clientes que Lorena recebe em seu apartamento são antigos conhecidos. A cada atendimento, novos lençóis, toalhas e lingeries – (Isis Medeiros/Fotografia)

Apesar de sentir-se segura, ela reconhece que muitas trabalhadoras, principalmente as que trabalham na rua ou em quartos de hotéis, estão passando por situações bem diferentes da sua. Fatima Muniz (Jade), 52 anos, fundadora e coordenadora do coletivo Clã das Lobas, passou grande parte da pandemia trabalhando em um hotel no hipercentro de Belo Horizonte e sentiu as oscilações no movimento a cada decreto de abertura e fechamento dos serviços não essenciais. “Eu falo que é um combo. O homem sai de casa pra ir no Shopping Oiapoque [shopping popular no Centro de Belo Horizonte] e aproveita pra dar uma passadinha lá nas ‘tias’. Depois vai no bar, toma uma cervejinha e almoça.” Ela conta que, quando o comércio do entorno fica fechado, os clientes pensam duas vezes antes de irem para a rua.

“Eu falo que é um combo. O homem sai de casa pra ir no Shopping Oiapoque [shopping popular no Centro de Belo Horizonte] e aproveita pra dar uma passadinha lá nas ‘tias’. Depois vai no bar, toma uma cervejinha e almoça”

Jade
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(Isis Medeiros/Fotografia)

Jade ajudou a produzir, no ano passado, uma cartilha sobre redução de danos para as trabalhadoras sexuais durante a pandemia. O material destaca as formas de transmissão e sintomas da Covid-19, a importância do cuidado com a saúde mental e as recomendações de segurança e higiene que devem ser seguidas durante o trabalho. Para o ambiente, janelas abertas, lençóis descartáveis, borrifador com solução sanitária nas superfícies do quarto; para as trabalhadoras, lavar as mãos sempre, manter as unhas curtas, evitar acessórios, usar os cabelos presos, não tocar nas pessoas quando realizar uma abordagem na rua, não ingerir álcool e outras drogas, ser carinhosa sem contato facial e um novo banho a cada atendimento. Durante a transa, nada de beijo na boca e sexo oral. A cartilha também traz recomendações de uma infectologista sobre as posições sexuais que ajudam a reduzir minimamente o contágio. Mas as sugestões muitas vezes não funcionam: se antes a luta era para fazer os homens usarem camisinha, agora também é para continuarem com a máscara. “Antigamente, os clientes chegavam e a primeira coisa que eles tiravam era a cueca. Agora, a primeira é a cueca e a segunda é a máscara”, conta Jade.

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Iniciativas públicas

No início de abril, com o agravamento da pandemia, a Associação das Prostitutas de Minas Gerais (Aspromig) pautou a suspensão das atividades das profissionais do sexo. O objetivo da paralisação foi pressionar o governo a incluir a categoria como grupo prioritário no cronograma de vacinação contra a Covid-19. “Nós queremos que nos incluam nas políticas públicas. Você vê vários grupos, mas não falam do nosso. Nós só somos vistas à margem da sociedade”, defende Cida Vieira, presidente da Aspromig.

Em um dos hotéis na rua Guaicurus, na tradicional zona de prostituição no centro de Belo Horizonte, uma sala de convívio é fruto da luta de Jade e outras mulheres. O espaço foi criado para que as trabalhadoras possam conversar e descansar entre um programa e outro. Antes da iniciativa, as mulheres faziam suas refeições dentro dos próprios quartos alugados no hotel –
Em um dos hotéis na rua Guaicurus, na tradicional zona de prostituição no centro de Belo Horizonte, uma sala de convívio é fruto da luta de Jade e outras mulheres. O espaço foi criado para que as trabalhadoras possam conversar e descansar entre um programa e outro. Antes da iniciativa, as mulheres faziam suas refeições dentro dos próprios quartos alugados no hotel – (Isis Medeiros/Fotografia)

A responsabilidade sobre a definição do Programa Nacional de Imunizações é do Ministério da Saúde. É ele quem organiza a compra das vacinas e o envio das doses. Os estados são encarregados da distribuição nos municípios e as prefeituras pela infraestrutura para a aplicação dos imunizantes. Não é possível incluir novos grupos no Programa, mas é possível alterar as regras de prioridades de acordo com a quantidade de doses disponíveis. As trabalhadoras do sexo não reivindicaram que a categoria fosse simplesmente incluída entre os grupos prioritários de vacinação: elas pautaram o seu reconhecimento enquanto profissionais da saúde. “Nós trabalhamos na saúde, somos educadoras e estamos na linha de frente. Não tem como falar que nós não temos prioridade”, afirma Cida Vieira. As trabalhadoras têm um papel importante na divulgação de informações e materiais de prevenção às ISTs (infecções sexualmente transmissíveis). No município de Belo Horizonte, mais especificamente, elas realizam uma série de ações junto ao programa BH de Mãos Dadas Contra a Aids.

“Nós queremos que nos incluam nas políticas públicas. Você vê vários grupos, mas não falam do nosso. Nós só somos vistas à margem da sociedade”

Cida Vieira, presidente da Aspromig

A paralisação que ocorreu em abril ganhou espaço na imprensa local e gerou repercussão e críticas, mas os órgãos responsáveis disseram que não poderiam incluir a categoria como grupo prioritário pois iriam seguir a hierarquia proposta pelo Ministério da Saúde. As profissionais do sexo têm se imunizado a passos lentos, na medida em que a vacinação por idade avança. Enquanto isso, elas buscam apoio dos governos, mas as medidas para amparar os grupos mais vulneráveis durante a pandemia têm sido tímidas. O auxílio emergencial proposto pelo governo federal passou de R$ 600 para R$ 150. O valor é insuficiente para atender as demandas básicas de moradia, alimentação, higiene e saúde das trabalhadoras. Ainda assim, parte das profissionais do sexo se cadastraram para receber o benefício e muitas tiveram o pedido negado sem qualquer justificativa. A prefeitura da capital mineira, por sua vez, incluiu as trabalhadoras do sexo em programas de segurança alimentar. “Nós apoiamos o retorno para a cidade de origem a quem tinha o interesse de retornar e apoiamos os movimentos organizados com distribuição de materiais e destinação de cestas básicas”, afirma o subsecretário de Direito e Cidadania, Thiago Alves. As profissionais do sexo também foram incluídas no grupo de medidas protetivas, que compreende mulheres vítimas de violência doméstica e pessoas assistidas pelo Centro de Referência LGBT e pelo Centro Especializado de Atendimento à Mulher – Benvinda. O programa de distribuição de cestas básicas e kits de higiene para este grupo atinge cerca de 6 mil famílias. O governo estadual não apresentou nenhum plano de suporte à classe.

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No início da pandemia, o Clã das Lobas ajudou a produzir uma cartilha com dicas de assepsia e de posições sexuais que ajudam a reduzir o risco de contágio por coronavírus. Nos corredores do Hotel Magnífico, na famosa Rua Guaicurus, os lembretes sobre o cuidado com a saúde estão por todos os lados. O proprietário do hotel, Flavio Dornas, autorizou a sessão de fotos que você vê nesta reportagem –
No início da pandemia, o Clã das Lobas ajudou a produzir uma cartilha com dicas de assepsia e de posições sexuais que ajudam a reduzir o risco de contágio por coronavírus. Nos corredores do Hotel Magnífico, na famosa Rua Guaicurus, os lembretes sobre o cuidado com a saúde estão por todos os lados. O proprietário do hotel, Flavio Dornas, autorizou a sessão de fotos que você vê nesta reportagem – (Isis Medeiros/Fotografia)

“Nós não queremos tirar ninguém da prostituição, nós queremos que todas tenham uma renda paralela para quando chegar essas pandemias, sabendo que essa renda não vai sustentar, mas pode ajudar”

Jade

Nesse contexto, as trabalhadoras do sexo contam com a solidariedade e o apoio de organizações beneficentes e movimentos sociais, que doam cestas básicas e outros produtos como leite, fraldas, artigos de higiene pessoal e enxovais para bebê. Elas também se organizam para oferecer às mulheres acolhimento e formação, como acontece na Casa de Acolhimento Provisório para Penhas e Izadoras. O espaço, que homenageia duas trabalhadoras do sexo assassinadas em Belo Horizonte, é fruto da parceria entre a Aspromig e o Clã das Lobas. A casa acolhe mulheres e oferece cursos como design de sobrancelha, pintura em stencil e aromaterapia. “Nós não queremos tirar ninguém da prostituição, nós queremos que todas tenham uma renda paralela para quando chegar essas pandemias, sabendo que essa renda não vai sustentar, mas pode ajudar”, afirma Jade.

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A diária dos quartos do hotel é de R$ 100. As mulheres fazem programas que vão de R$ 15 a R$ 20 com duração de 20 minutos. Jade conversa de quarto em quarto e orienta sobre os cuidados necessários à saúde das colegas de profissão. Diariamente, centenas de homens passam pelos corredores desses hotéis, mas as mulheres reclamam que o movimento, que ainda era bom em 2020, caiu bastante este ano
A diária dos quartos do hotel é de R$ 100. As mulheres fazem programas que vão de R$ 15 a R$ 20 com duração de 20 minutos. Jade conversa de quarto em quarto e orienta sobre os cuidados necessários à saúde das colegas de profissão. Diariamente, centenas de homens passam pelos corredores desses hotéis, mas as mulheres reclamam que o movimento, que ainda era bom em 2020, caiu bastante este ano (Isis Medeiros/Fotografia)

Melhoras para a categoria

O trabalho sexual é reconhecido como profissão pela Classificação Brasileira de Ocupações (CBO) e as mulheres que atuam como profissionais do sexo no Brasil podem se registrar como trabalhadoras autônomas e ter direito aos benefícios da seguridade social, como licença maternidade e aposentadoria. Todas as atividades consideradas acessórias, porém, são criminalizadas, desde o agenciamento de profissionais até a manutenção de casas de prostituição. “Essas trabalhadoras estão em um lugar de muita precariedade. Se elas trabalham em uma boate ou em um hotel, por exemplo, não pode haver reconhecimento daquela relação de trabalho pois qualquer vínculo de intermediação de trabalho sexual é considerado crime pelo código penal”, afirma a advogada popular Mariana Prandini, pesquisadora do Coletivo Margarida Alves de Assessoria Popular.

“Essas trabalhadoras estão em um lugar de muita precariedade. Se elas trabalham em uma boate ou em um hotel, por exemplo, não pode haver reconhecimento daquela relação de trabalho pois qualquer vínculo de intermediação de trabalho sexual é considerado crime pelo código penal”

Mariana Prandini, advogada popular
Tirar os calçados antes de entrar em casa tornou-se um hábito da pandemia. Na casa onde Lorena mora e atende seus clientes, não é diferente –
Tirar os calçados antes de entrar em casa tornou-se um hábito da pandemia. Na casa onde Lorena mora e atende seus clientes, não é diferente – (Isis Medeiros/Fotografia)

Para garantir maior estabilidade, algumas trabalhadoras e coletivos lutam pela regulamentação da profissão, a fim de garantir o reconhecimento do vínculo trabalhista e a aplicação das leis gerais da CLT, assim como em outras profissões. A proposta não é uma unanimidade: outras acreditam que o melhor caminho é serem reconhecidas como microempreendedoras, mas com um estatuto próprio. Independente da legislação, as trabalhadoras do sexo tiveram que lidar com a falta de políticas que dialogam com a sua realidade e precisaram se adequar para continuarem vivas durante a pandemia, como conta Jade: “Tá tudo em mutação, a nossa vida, o vírus, as contas. Eu falo que a mutação somos nós mesmos: nós tivemos que nos adaptar, nos reformular, nos reinventar, para sobreviver”.

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