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m pesquisas acadêmicas, livros inquietantes e planos políticos, no punho de caligrafias plurais e com destinos diferentes, essa reportagem já foi escrita. Ainda assim, sua urgência arde na sociedade brasileira de 2021. Não existe Brasil sem África; no entanto, nas salas de aula, o negro ainda é estudado como sujeito “a-histórico”, cuja trajetória se inicia em solo latino-americano como escravizado (ou pior: escravo). Mudar esse cenário depende de muitas iniciativas, e todas envolvem entender e discutir as tensões do tecido social que aplica, recebe e produz conhecimento – este tipo de renovação só é possível através de políticas públicas. Segundo a doutora em Ciência Política Sonia Fleury, além de planos e tomada de decisões, fazer uma política pública exige um consenso sobre seus objetivos, o que atravessa um processo histórico de atores políticos, com suas disputas – sobretudo ideológicas – pelo poder. “Neste processo de luta”, prossegue Fleury, “diferentes atores se enfrentam e reconstituem suas identidades”.
“Sabe o que me estimulou a fazer História?”, provoca Janete Ribeiro, de 57 anos, educadora e pensadora da tríade – escola básica, movimento negro e ensino acadêmico. “Em 1911, João Batista de Lacerda foi representar o Brasil no Congresso Internacional das Raças e escreveu um relatório no qual aponta que em 100 anos não teria negros na população brasileira. Seria 2011, né? Em 2011, nós já éramos mais de 50% da população do Brasil”, elabora. “Em 1911, as políticas de extermínio e perseguição ao povo negro eram muito intensas. O que essa gente fez para sobreviver? Onde estava essa gente? Quais foram essas estratégias? Me parece que este é o conteúdo fundamental para as escolas.”
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Janete já acompanhava a pauta de educação dentro do movimento negro há pelo menos uma década, quando foi aprovada a Lei nº 10.639, em 2003. Ainda não era professora, mas tinha um papel significativo como ativista e afirma que a educação é uma questão histórica da militância – desde os jornais negros até experiências práticas de educação informal, como Teatro Experimental do Negro, idealizado por Abdias Nascimento. Quase vinte anos depois da lei que torna obrigatório o ensino de História e Cultura Afro-brasileira em território nacional, por que essa ainda não é uma realidade das escolas? E como transformar este campo?
“As pessoas vão dizer: formação. Só que se investe uma fortuna em formação e ela não chega à base”, expõe Janete. Com décadas voltadas à militância e defesa da educação básica, a professora carioca tem orgulho de se lembrar da sua movimentação durante os anos 1990 ao lado de outras figuras icônicas do movimento negro brasileiro, como Beatriz Nascimento e Azoilda Trindade Loretto, militante que a inspirou na jornada da educação e é reconhecida pelo seu estudo dos valores civilizatórios afro-brasileiros.
“Em 1911, as políticas de extermínio e perseguição ao povo negro eram muito intensas. O que essa gente fez para sobreviver? Onde estava essa gente? Quais foram essas estratégias? Me parece que este é o conteúdo fundamental para as escolas”
Janete Ribeiro, educadora
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Atualmente, Janete também usa seu tempo livre para descobrir uma veia artística que por muito tempo nem sabia que tinha. “Racismo faz isso: pressiona a gente a se fechar para nossos talentos – e a escola também age assim, viu? Isso é uma das coisas que eu tenho trabalhado muito com as minhas turmas: autoestima e protagonismo”, conta, “Se a gente conseguisse implementar a lei, a cena seria diferente porque essa lei é sobre autoestima e protagonismo negro na escola.” No entanto, desde 2003, a lei nº 10.639 permeia a rede de ensino como um ponto opcional da grade, ou então é promovida como uma aula extra, sem a mesma atenção, cuidado e profundidade que a disciplina de História (da Europa).
Mas, se já foi aprovada a lei, produzido e distribuído o material escolar, o que falta? Janete advoga pelos dois lados: professor e aluno. Por um lado, quem leciona na escola básica não é valorizado; por outro, os estudantes são os maiores prejudicados, independente de onde reside o problema. “Olha, há investimento no programa do livro didático, no material de literatura e na biblioteca da escola, mas essa produção chega na escola com um roteiro de como o professor deve usar sem que o professor seja chamado para construir o material. Quem constrói o material não esteve na sala de aula, logo não entende os enfrentamentos diários que a gente tem”, diz Janete.
![JANETE_7 -](https://gutenberg.elastica.abril.com.br/wp-content/uploads/2021/07/JANETE_7.jpg?quality=70&strip=info&w=1024&crop=1)
“Toda vez que se fala do fracasso da aplicação da lei, o professor é responsabilizado. O gestor não é”, dispara. “Esse professor que está se dividindo entre quatro ou cinco escolas não foi visto em sua potência, entende? Me parece que valorizar o profissional e a comunidade dele é um dos grandes desafios para a implementação da lei – dialogar com quem esse cara é, não dizer quem ele deveria ser, porque é nesse momento em que se cria uma resistência à mudança.” Além disso, Janete afirma que a forma de se tratar o conteúdo deve dialogar com o cotidiano da escola básica, o que vai muito além de um material teórico. A professora propõe uma política pública de educação das relações raciais, a qual ouça professores, alunos e territórios. Assim, as estratégias seriam adaptadas à prática e às necessidades, não o contrário.
No artigo Políticas Sociais e Democratização do Poder Local, a cientista política Sonia Fleury afirma que “as políticas sociais, muito mais que simplesmente ser um instrumento para possibilitar o acesso a um bem ou serviço (cesta básica, escola etc.) são um poderoso mecanismo para forjar a sociedade que queremos criar, definindo as condições de inclusão na comunidade de cidadãos.” A Lei 10.639 caminha junto com esta máxima, porém seus meios de atuação não permitem seu pleno desenvolvimento. Segundo Janete, a educação básica no Brasil ainda funciona na ideia de que quem produz o saber é a universidade e tanto professores como estudantes só precisam se apropriar da mercadoria chamada conhecimento – o tal do decoreba. Ainda segundo a professora carioca, essa dinâmica torna nítida qual é a finalidade projetada sobre a educação brasileira: a ascensão social. Com outras estratégias, no entanto, a educação poderia ser um caminho de transformação social radical – e é este tipo de educação que Janete decidiu nutrir.
![JANETE_8 -](https://gutenberg.elastica.abril.com.br/wp-content/uploads/2021/07/JANETE_8.jpg?quality=70&strip=info&w=1024&crop=1)
“A educação brasileira ainda está no século XIX, na domesticação dos corpos”, revolta-se, “A lei nº 10.639 fala de uma outra perspectiva, sabe? De trazer a cultura viva. Pensa comigo: o menino cresce vendo o pai mestre-sala e a mãe porta-bandeira, vê esse movimento da escola de samba, aprende tudo sobre a escola de samba mirim e na sala de aula não consegue aprender o que está sendo ensinado. Por que isso acontece? Porque a lógica da escola não é a lógica que ele vive no mundo. Esta cultura não é valorizada na escola e, quando é, tem um verniz de folclore ou exótico. O estudante cria resistência. Você não criaria?”
“A educação brasileira ainda está no século XIX, na domesticação dos corpos”
Janete Ribeiro, educadora