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Manual da brisa
Publicada em 1964, A Experiência Psicodélica é relançada no Brasil em momento fundamental de estudos científicos com drogas
Tudo começou com um pequeno grupo de cientistas que esbarrou, conscientemente ou não, em substâncias psicodélicas. Albert Hoffman criou o LSD em seu laboratório enquanto pesquisava a eficiência de um fungo para conter sangramentos excessivos na gravidez; botânicos franceses e americanos já haviam isolado a mescalina do peiote no final do século 19; o MDMA foi sintetizado pela farmacêutica alemã Merck ainda em 1912, quando a empresa procurava uma maneira de acelerar a coagulação do sangue.
Cinco anos após o suicídio de sua esposa, o psicólogo americano Timothy Leary ficou sabendo de rodas xamãs mexicanas que administravam pscilocibina, promovendo curas e acessos ao divino. Em 1960, teve sua primeira experiência com cogumelos. Quatro anos depois, publicou A Experiência Psicodélica junto dos colegas Ralph Metzner e Richard Alpert. O livro, relançado há pouco tempo no Brasil, revolucionou a psicodelia e facilitou a entrada de muitos nos campos da mente, servindo como um manual de condução guiada para experiências com ácido, DMT e qualquer outra substância química ou natural que afeta o campo neural.
A ciência – aquela que te recomenda tomar vacina e não hidroxicloroquina – trabalha através do que é empírico. Por isso, Leary, Metzner e Alpert desenvolveram um método para administrar os psicodélicos em seus pacientes e objetos de estudo com a esperança de que processos iguais gerariam observações valiosas sobre os efeitos de tais substâncias. Se os três pesquisadores passaram por experiências xamânicas, eles não deixaram de lado a observação sagaz de que aquele espaço ritualístico fornecia duas características fundamentais para que a psicodelia fluísse em seu auge: set e setting.
Hoje, quase 60 anos depois de A Experiência Psicodélica, os cientistas mais renomados do atual renascimento psicodélico se baseiam nas regras de set e setting para fazer seus estudos – nomes como Sidarta Ribeiro e Luís Fernando Tófoli, no Brasil, e Roland Griffiths no exterior. Mas, o que isso significa?
Começando a viagem
O conceito de set diz respeito à como está o estado mental do “psiconauta” – tomando o termo popularizado pelo jornalista Marcelo Leite para definir o usuário de substâncias psicoativas em contextos controlados. Já o setting tem a ver com o ambiente onde a experiência psicodélica acontecerá.
Em reportagem publicada em 2021 aqui na Elástica, Sidarta Ribeiro define: “A experiência psicodélica tem que ser assistida que nem um esporte radical. Quanto mais especial for o setting, como uma cachoeira em um dia maravilhoso, melhor será o trabalho”.
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Para Leary, Metzner e Alpert, o setting perfeito de A Experiência Psicodélica está intimamente ligado ao Livro Tibetano dos Mortos, um tomo ancestral da literatura budista que aborda a roda cármica e o ciclo eterno de morte e renascimento, um volume que foi estudado por Carl Jung dentro do aspecto da psicologia antes da primeira revolução psicodélica.
Como os próprios cientistas explicam no livro, cada interpretação psicodélica individual está intimamente ligada aos signos e símbolos que racionalizamos em nossas vidas. Nesse contexto, não é difícil entender a escolha dos pesquisadores pelo Tibete: nos anos 1960, o mundo ocidental passava por uma invasão da cultura indiana, com gurus budistas e hinduístas inspirando celebridades e pessoas comuns com lições de autoconhecimento até então rejeitadas pela racionalidade do pensamento europeu.
Morte e vida em uma sessão
Falar sobre o Livro Tibetano dos Mortos também é uma maneira de tentar compreender uma pergunta fundamental que os psicodélicos trazem em suas experiências: vivemos realmente como seres individuais, ou há um véu de ilusão que nos impede de experimentar uma outra realidade?
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Enquanto os ensinamentos indianos ancestrais já lidavam com a transcendência do corpo e do espírito de maneira muito aberta há milênios, outras doutrinas ocidentais lidaram com essa questão ou de maneira críptica, ou negaram completamente essa possibilidade a não ser através da metafísica. É verdade que outros povos originários também se debruçam sobre essa questão há milênios, mas as colonizações perversas dos continentes americano e africano, principalmente, dizimaram boa parte do conhecimento ancestral, confundido por vezes como bruxaria e paganismo. Isso significa que o Livro Tibetano dos Mortos seja uma das fontes mais antigas sobre o tema, cujas lições podem ser praticadas por todos que assim desejarem.
Leary, Metzner e Alpert propõem, então, um trabalho assistido – cuja condução pode ser guiada através de interferências, mas que deve acontecer principalmente em estado meditativo individual, ainda que a dinâmica aconteça em grupo.
Parece estranho propor um uso recreativo de psicodélicos dessa maneira, hoje, sendo que o set e setting são mais utilizados em estudos clínicos ou rituais xamânicos, como com ayahuasca, mas as lições de A Experiência Psicodélica também servem como preparação para o viajante ocasional não entrar em bad trips, ou mesmo tirar o medo de um marinheiro de primeira viagem (astronauta, talvez?).
No controle da sua brisa
Quem já passou por uma série de experiências psicodélicas com set e setting sabe o quanto esses dois aspectos são fundamentais para alcançar os estágios mais “avançados” de consciência, enquanto o uso recreativo – em uma festa por exemplo – te permite chegar apenas a um limiar mais baixo, já que seu eu interior tem a atenção disputada com um universo de cores, sons e sabores do mundo exterior.
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No entanto, o livro não deve soar ao leitor como uma moralização da maneira que você usa sua droga, mas sim como um documento histórico de como tudo começou, e um guia básico de como proceder. O que deve ficar claro é que Leary, Metzner e Alpert sugerem um método que serve como padrão científico de eficácia até hoje.
Portanto, se você é como eu e acredita na ciência, confie que a Terra não é plana e dê uma chance à sua onda da próxima vez que for dropar um ácido e faça à maneira proposta em A Experiência Psicodélica. Você não irá se arrepender.
Como últimas notas, vale parabenizar a editora Aleph por essa nova edição do livro – que vem com um pôster com a ilustração de capa. A publicação tem tradução competente e um projeto gráfico impecável, onde as cores do texto mudam a cada poucas páginas, como o caleidoscópio que é uma das principais visões proporcionadas pela psicodelia.
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